Em vista da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal nesta semana, considerando constitucional a adoção de cotas raciais em exames vestibulares, republicaremos texto acerca do assunto aqui postado em 2008. Naquela época, foram entregues a Gilmar Mendes, então presidente daquela Corte, um manifesto contrário e outro favorável à adoção do sistema de cotas. Pretendíamos ter escrito mais sobre o assunto, tanto que aquela postagem foi classificada como primeira parte da discussão. Lamentavelmente não o fizemos. Agora, felizmente talvez não seja mais necessário.
Reproduzamos aquele texto, então.
DOMINGO, 10 DE AGOSTO DE 2008
O STF estará julgando em breve uma ADIN representada contra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro. Por conta disso, foram apresentados àquela Corte dois manifestos assinados por nomes importantes da sociedade civil brasileira, um contrário ao sistema de cotas e outro favorável. O documento anticotas intitulava-se “113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais” e conta entre os seus signatários com gente como Aguinaldo Silva, autor de telenovelas da Rede Globo, e Reinaldo Azevedo, jornalista da revista Veja. O texto é bem escrito, mas peca pela excessiva auto-indulgência. A todo momento lembrando o leitor de que não são racistas, os manifestantes mais parecem aquela personagem do conto Arranjo em branco e preto, da escritora norte-americana Dorothy Parker!
Do outro lado, o “Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas” é assinado por, entre outros, Oscar Niemeyer, pelo jurista Fábio Konder Comparato e pelo teatrólogo Augusto Boal. Apresentado no Supremo após a entrega do manifesto anticotas, o documento, mais do que uma defesa, é um contra-ataque aos argumentos apresentados pelos antagonistas.
Sem dúvida que é inquietante a celeuma provocada pela simples alusão às cotas nos concursos vestibulares. Inquietante e incompreensível. Afinal, o Brasil é, de forma geral, um país altamente tolerante com o sistema de cotas e reservas. Não se ouve falar de oposição organizada à reserva de vagas para portadores de deficiência física em concursos públicos. Tampouco se sabe de ações judiciais contra a obrigatoriedade de se assegurar um mínimo de candidatas mulheres por partido político (embora, nesse caso, o legislador tenha sido inteligente em não assegurar um mínimo de vagas para um dos sexos, mas antes evitar que qualquer um deles obtenha mais do que 70% das candidaturas, mas ninguém é ingênuo o suficiente a ponto de não perceber que, em última análise, a lei protege a mulher na política). Os anticotas tentam desqualificar os argumentos que usam tal analogia, mas não conseguem demonstrar claramente que eles não têm no mínimo a mesma raiz (por isso talvez a quase paranóica necessidade de ter de demonstrar que sua posição contrária às cotas para negros nos vestibulares não tem nada a ver com racismo).
O portador de deficiência por óbvio que depara com grandes dificuldades de entrar no mercado de trabalho, daí a “discriminação inversa” da reserva de vagas nos concursos para ingresso no setor público. E historicamente a mulher ficou relegada a um segundo plano no quadro político do país, sendo necessária alguma compensação que tente minimizar tal desequilíbrio. Mas tanto os portadores de deficiência quanto as mulheres precisam efetivamente participar dos respectivos processos seletivos ou de escolha a que se submetem, e independentemente de qualquer reserva de vagas, são obrigados a obter resultados mínimos ou apresentar características que estão enquadradas no já consagrado - ainda que discutível - princípio do mérito.
O mesmo se dá com a questão do negro na sociedade em geral e no campo escolar em particular. Os dados estatísticos comprovam - mas mesmo sem eles qualquer observação empírica denuncia - que a participação do negro na riqueza do Brasil e no universo escolar é desproporcional ao seu contingente geral no país. O sistema de cotas é apenas um pequeno passo na tentativa de se alterar tal realidade, a qual tem origem não somente nos árduos anos de escravidão, mas talvez principalmente na não-inserção do negro na sociedade brasileira pós-abolição. E a exemplo dos deficientes nos concursos públicos, e das mulheres nos partidos políticos, os negros beneficiários dos sistemas de cotas são obrigados a também ter desempenhos mínimos para ingressar nos cursos no número de vagas que lhes couber.
E por falar em mérito, vale recorrer a Peter Singer (ele de novo!), que no seu indispensável Ética prática questiona por que apenas a inteligência é usada nos concursos de ingresso nas universidades. O filósofo sustenta que outras qualidades ou características são também fundamentais para as mais diversas atividades e, portanto, poderiam ser usadas como critério de admissão de estudantes. Indo além, Singer alega que a seleção pelos testes de inteligência pode ser enquadrada no mesmo nível de qualquer outra utilizada pelos programas de “discriminação inversa”. Noutras palavras, se as universidades passassem a usar outro critério para fomentar seus programas de ação afirmativa em vez dos tradicionais testes que supostamente medem a inteligência, estariam apenas mudando sua política, e se isso trouxesse descontentamento, seria apenas a choradeira típica dos beneficiários do modelo anterior. Ainda sobre isso, o texto em defesa das cotas marca um de seus melhores tentos ao asseverar que “uma sociedade democrática sabe que o mérito deve ser um ponto de chegada e não um ponto de partida”. (grifo nosso)
(...).
Um comentário:
Olá, Iendis,
O STF parece que está entrando em uma nova era. Tomara!
Aproveito para convidar você e os leitores do seu blog para as comemorações do terceiro aniversário do Jazz + Bossa.
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