terça-feira, 30 de novembro de 2010

Ornette Coleman no SESC Pinheiros

Além de Paul McCartney e Lou Reed, outra lenda da música do século XX a pisar nos palcos paulistanos em novembro foi o revolucionário Ornette Coleman, saxofonista considerado o pai do gênero conhecido como free jazz.

A despeito de ser um artista associado à vanguarda jazzística, sua apresentação no SESC Pinheiros não foi necessariamente marcada por grandes improvisações ou pelos arroubos de nonsense tão comuns ao movimento, antes optando por interpretações competentes mas contidas, num quase hard bop, por assim dizer. Tanto foi assim que foram raras as vezes em que Ornette Coleman se arriscou no trompete ou no violino, instrumentos que toca de forma extremamente particular, geralmente de modo a causar estranhamento nos ouvintes.

Ainda que tudo tenha corrido dentro de uma normalidade que, em princípio, não seria de se esperar de artista tão inquieto, situações inusitadas ocorreram no show da noite de 28.11.2010. A primeira delas decorre de um infortúnio: durante execução da canção "Peace", ocorre falta de energia, causando grande apreensão na platéia. De repente, apenas com as luzes de emergência funcionando, os músicos começam a tocar, de forma desplugada, a atemporal "Lonely Woman", para delírio do público. Como se não bastasse, apagam-se também as luzes de emergência e, sob o breu total, a galera vai à loucura, aparentemente entendendo que o clássico de 1959 cai muito bem naquelas condições.

Outra grande surpresa foi quando, ao final absoluto, ou seja, depois do bis, o músico dirigiu-se ao público e começou a cumprimentar alguns espectadores da primeira fila. Todos que estavam mais atrás correram até a beira do palco e foram conversar com o mestre. O genial Ornette Coleman, que havia tratado com frieza jornalistas da grande imprensa brasileira, foi paciente e simpático com os fãs, distribuindo cumprimento e autógrafos, além de se deixar filmar e fotografar e até mesmo posar para fotos ao lado de alguns mais atirados.

E minha intuição funcionou parcialmente naquela noite. Se, por um lado, falhei feio em não levar máquina fotográfica para o evento, por outro lado, acertei em cheio em ir munido da capinha do CD de The Shape of Jazz to Come, um dos melhores discos de todos os tempos. Foi o primeiro dos muitos autógrafos que Ornette Coleman distribuiu naquela noite. Ele grafou meu nome errado na capinha; mas quem se importa?

Abaixo, um pequeno vídeo com a capa do CD autografada pelo veterano artista, com fundo musical da gravação do áudio da sequência acima descrita, com a interpretação de "Peace", a queda de energia, e a retomada com "Lonely Woman". Tudo obra de Coleman, exceto o probleminha técnico!

domingo, 7 de novembro de 2010

O vermelho é mais vermelho, o azul é menos azul, mas isso não tem importância

Pouparei o leitor da reprodução do mapa brasileiro, pintado de vermelho nos estados da Federação em que Dilma Rousseff, do PT, bateu José Serra, do PSDB, e de azul nas unidades do País em que se deu o contrário. A mídia o fez ad nauseam e, provavelmente sem querer, ajudou a desencadear até ondas de preconceito e intolerância na rede mundial de computadores contra o nordeste, região supostamente responsável pela vitória da candidata petista.

É um grande clichê dizer que os números normalmente escondem realidades concretas só perceptíveis quando sobre eles nos debruçamos. E justamente por ser um chavão é de se encarar com tristeza o fato de as análises terem deixado de tomar certos cuidados. A bem da verdade, alguns órgãos de imprensa, de forma tímida e um pouco atrasada, correram a lembrar que, mesmo se se desconsiderasse o nordeste, ainda assim Dilma venceria as eleições, mesmo que de forma extremamente apertada.

Abrindo parênteses, cabe lembrar o belo comentário do jornalista Rodrigo Vianna, advertindo-nos de que não se deve cogitar a ideia de se excluir a votação da região nordeste para dar maior legitimidade ao trunfo da petista. Em verdade, a legitimidade de sua eleição vem justamente do ótimo resultado que ela obteve em todo o País, inclusive - é óbvio - no nordeste.

Voltando à realidade que se esconde atrás dos números, não se descarte o fato de a candidata da coligação liderada pelo PT ter vencido também na região sudeste, com êxito extraordinário nos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, com números rondando a casa dos 60%, um pouco a mais no primeiro e um tiquinho abaixo no segundo, situação que vem em reforço da desconstrução da tese que quer atribuir ao voto nordestino o sucesso de Dilma.

Além disso, melhor mapa seria aquele que trouxesse gradações de cores. Sim, pois em alguns estados o vermelho dilmista deveria vir em tons mais fortes, caso de Amazonas, Pernambuco e Bahia, por exemplo, onde alcançou mais de 70% dos votos válidos. O azul serrista, por seu turno, teria que vir mais enfraquecido em estados como Rio Grande do Sul, Goiás e Espírito Santo, lugares em que faturou com pouco mais dos 50% dos votos válidos.

A leitura simplista dos números impede, também, de se ver as nuanças de cada localidade. No estado de São Paulo, por exemplo, onde Serra foi vitorioso com respeitável vantagem, foi digna de nota a dianteira da presidente eleita em importantes municípios, como Osasco, São Bernardo do Campo, Mauá, Diadema, Ferraz de Vasconcelos, Poá, Franco da Rocha, Francisco Morato, Carapicuíba, Barueri e Itapecerica da Serra, todas na grande São Paulo, cidades marcadas por considerável pujança econômica, por um lado, ou tidas como cidades-dormitório, por outro, ou seja, Dilma Rousseff, ao que parece, empolgou de forma massiva boa parte da classe trabalhadora urbana do entorno da capital paulista.

De se realçar, também, o bom resultado da primeira mulher a se eleger presidente da República na região de Campinas, repetindo, aliás, êxito do primeiro turno, faturando em Sumaré, Hortolândia, Santa Bárbara D'Oeste e outras. Nesta área, mesmo Aloízio Mercadante navegou bem no primeiro escrutínio, na sua malfadada disputa pelo governo do estado.

Do lado de Serra, registre-se que, derrotado nos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, foi o preferido em vários municípios fluminenses e mineiros, borrando fortemente de azul os majoritariamente avermelhados mapas dessas unidades da Federação. Em desfavor do tucano, destaque-se que não ganhou em nenhum município do Amazonas, o que é surpreendente se se levar em consideração os expressivos resultados que obteve nos nortistas Roraima e Acre.

Pois bem, senhores. Dentro de uma caixa há outra caixa. Pegue-se o mapa do Brasil, com seus estados tingidos de vermelho ou azul: tem-se parte da história. Em seguida, isole um dos estados e ver-se-ão seus municípios também pintados daquelas duas cores, indicando, portanto, que as opções não foram categoricamente hegemônicas. Mesmo sem os dados, arriscamo-nos a dizer que informações ainda mais contraditórias ou surpreendentes viriam se se isolassem os bairros ou distritos de cada cidade, e dentro deles tivéssemos acesso aos resultados das diferentes zonas e seções. Se me permitem mais um chavão, a questão é deveras complexa. E só!

Alguma análise, de cujo autor indesculpavelmente não me lembro, apontou muito bem que a eleição brasileira é na base do sufrágio universal, não representando as unidades da Federação nenhuma espécie de colégio eleitoral, como é o caso dos Estados Unidos. Como cada voto é um voto, e como leva aquele que consegue o maior somatório de sufrágios, pouca importância há se os eleitores vêm do Tocantins ou do Paraná, se é de Itabaiana ou de Belford Roxo, ou se é do bairro da Penha ou da Lapa do Rio de Janeiro, ou da Penha ou da Lapa de São Paulo.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Depois do operário, a mulher

Muito se tem falado do sucesso da sexta eleição direta consecutiva para presidente da República Federativa do Brasil no pós-redemocratização. Com efeito, é prova viva da consolidação das instituições democráticas do País. O único senão do período talvez tenha sido o implemento do instituto da reeleição em 1997, com validade já para o então mandatário Fernando Henrique Cardoso, caso clássico de mudança de regra no meio do jogo. Tal mácula foi corrigida pela firme decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de rejeitar mudança constitucional a lhe permitir disputar um terceiro mandato, a despeito de a sua extraordinária popularidade indicar que ele poderia tê-lo tentado.

Lula era o operário de pouca instrução, sem experiência administrativa. Como assim, querer ser presidente da República, perguntavam em todas as eleições de que participara até 2002. Seu governo, porém, sai de cena agora em 2010 muito bem avaliado, com o Brasil gozando de respeito e reconhecimento internacional inéditos e com a figura pessoal do presidente vista como a de inquestionável líder mundial. Os que erraram feio na avaliação corrente até em 2002 não dão o braço a torcer e insistem em dar razão a Albert Einstein e sua famigerada frase que lamentava o fato de ser mais fácil quebrar um átomo que um preconceito.

Dilma Rousseff, a presidente eleita do Brasil, foi, por sua vez, vítima cruel da perseguição da mídia e da oposição, algumas vezes calcada em preconceitos que tentaram atingir justamente a sua condição de mulher: a divorciada, sem companhia de um homem, agressiva. E a agressividade, acredita-se, só cai bem nos homens. Aliás, a agressividade é, não raro, apontada como uma qualidade necessária dos políticos. E por ser característica mais "naturalmente" presente nos homens, logo as mulheres não são, "naturalmente", preparadas para a política; e se são agressivas, não são "genuínas" mulheres, por assim dizer.

A grande verdade é que muito pouca importância deveria ter o fato de o presidente da República ser operário ou professor universitário, tampouco deveria ser importante o fato de ser homem ou mulher. A relevância de tal discussão só se dá justamente por obra dos preconceituosos e machistas, cuja obstinada atuação acabou por colocar as questões da origem, da formação e do gênero no centro da pauta política do Brasil. Neste caldo de cultura, por fim, a eleição de uma mulher para o cargo máximo da República - logo após o operário - dá mais um passo rumo ao fechamento do ciclo da tão festejada solidez democrática do País.

Viva a mulher brasileira! Bem vinda, presidente Dilma!