O caso envolvendo o já ex-ministro dos esportes Orlando Silva ainda vai ser motivo de estudo e decerto vai ser marcado como dos mais grosseiros atos de injustiça de nossa história. De quebra, ainda será marca registrada da pusilanimidade do governo brasileiro de plantão.
Roteiro estúpido: requentam-se, via revista de grande circulação, por intermédio de um sujeito enrascado com a Justiça, acusações que já vinham sendo objeto de investigação; acusa-se o então ministro de, in person, receber dinheiro numa garagem qualquer; o sujeito fala que vai apresentar provas no momento oportuno; não se apresentam as provas; a imprensa parte para o linchamento, sinalizando estar num braço de ferro com o governo; Procurador-Geral e Supremo Tribunal Federal, após pedido do próprio Orlando Silva, entram na jogada, usando de suas atribuições normais; a mídia vale-se dos expedientes legais instalados - normais, repetimos -, para intensificar os ataques ao ministro; depois de uma semana de resistência, Orlando Silva joga a toalha e apresenta a demissão.
Se o governo brasileiro teve um comportamento covarde no caso, a oposição, por sua vez, só para variar também agiu de forma patética, deixando bem claro que, conforme repetido ad nauseam, o verdadeiro partido oposicionista hoje é a mídia: sem a pauta da imprensa, a ausência de discurso dos políticos oposicionistas transformá-los-ia em verdadeiras nulidades.
A falta de limites da imprensa
Por que estaria a imprensa agindo de forma tão tresloucada? Seria em razão de uma sanha golpista descontrolada, como acusam alguns? É caso de antipetismo doentio? Não mira tanto Dilma, antes pretendendo atingir o ex-presidente Lula, querendo a todo custo anulá-lo em 2014?
Há um pouco de tudo acima. Mas nessa operação “derruba-ministros em série” a mídia vetusta parece estar, antes de tudo, tomada, a um só tempo, dos demasiadamente humanos dramas conhecidos como crise de identidade e necessidade de autoafirmação.
Houve um tempo em que se construíam consensos, de forma paulatina, através da imprensa. O chamado “efeito pedra no lago” era uma realidade. Burburinhos se espalhavam, por assim dizer, em camadas: começavam nos grandes centros urbanos com os que liam jornais, até, aos poucos, ganhar os grotões. Os roteiros políticos eram previsíveis.
O fenômeno Lula mostrou que a coisa mudou. Em 2002, pode-se dizer que a imprensa fez um pouco de “corpo mole”, pois havia uma ideia no ar de que, mais cedo ou mais tarde, o Partido dos Trabalhadores levaria a presidência da República, de modo que se tivesse que acontecer, que acontecesse logo; ademais, o “previsível” fracasso do governo petista enterraria as pretensões futuras do partido. A situação em 2006, todavia, desconcertou os que acreditavam já estar o roteiro estabelecido. Sofrendo campanha sórdida, desde o chamado mensalão, ainda assim Lula conseguiu resultado expressivo na sua reeleição contra o candidato do império midiático, obtendo especialmente o voto dos mais pobres e da população das regiões mais afastadas do País, que não deram bola para os esforços dos coronéis da velha imprensa.
Em 27 de dezembro de 2006, capa da revista CartaCapital estampava: “É o fim dos grotões, enquanto só nas classes A e B há quem vote de cabresto”. Em belo texto daquele número, assim expressou-se o jornalista Mino Carta:
(...) O vetusto voto de cabresto, destinado pelos donos do poder ao povo dos grotões, onde quer que os houvesse, mostrou valer, este ano, só mesmo nos rincões das classes A e B, onde a mídia ainda chega, sobretudo em São Paulo, o estado mais rico, ou menos pobre, e mais reacionário da Federação.” [Edição nº 425].
Em 2010, novamente a influência da velha mídia não conseguiu avançar além do andar de cima dos grandes centros urbanos, insistindo as águas dos lagos em ficar paradas, apesar das inúmeras pedras que lhes eram atiradas: o seu candidato, já derrotado em 2002, figura de importância histórica no cenário brasileiro, perdeu fragorosamente para um “poste” ungido por Lula.
A pauta da corrupção – somente no governo federal -, com consequente exploração de irregularidades em ministérios – certamente existentes em quaisquer secretarias estaduais e municipais do País -, trouxe para a mídia, neste 2011, a sensação de que pode ainda ter alguma relevância. Conseguir derrubar ministros, mais do que uma prática “esportiva”, virou questão de honra. Os jornalistas Eliane Cantanhêde e Fernando Rodrigues, entre outros, jactam-se do fato de o governo vir fazendo sua faxina supostamente na cola da barulheira midiática: é como se dissessem algo do tipo “não elegemos presidente, mas determinamos o rumo desse governinho incompetente e indicamos o único caminho possível da oposição... idem!”.
Perigos?
Bobagens de adolescentes (necessidade de se autoafirmar), dificuldades de homens de meia-idade (crise de identidade), "prática esportiva", questão de honra. Seja lá o que for, a grande verdade é que o resultado do troca-troca de ministros, por pressão e capricho da imprensa, tem sido o de deixar o governo federal na defensiva. Pior é que o caminho escolhido é do discurso fácil e ao mesmo tempo sem foco do combate à corrupção, que virou uma espécie de tema único nos debates sobre o País. Não por acaso, essa onda moralista vem sendo devidamente chamada de neoudenismo.
Eis o risco: a velha UDN foi o braço civil do golpe de 1964. A oposição sem discurso parece estar se deixando gostosamente levar por tal fantasma. Temos visto marchas meio disformes para lá e para cá, e a grita acerca da corrupção parece ser o último “bastião” de uma oposição que age como se tivesse perdido o bonde da história. Essas são justamente as horas propícias a aparecem aventureiros e justiceiros, sempre com o apoio do império dos meios de comunicação.
Não parece razoável classificar de neuróticos os que veem golpismo no agir dos grandes grupos de mídia. Além do prestígio de outrora, tais grupos andaram nos últimos tempos perdendo grana também, em vista da ampliação do rol de veículos que passaram a receber verbas publicitárias federais. Sob ditaduras, os grandões faturaram mais. Portanto...
Crise de identidade e necessidade de autoafirmação geralmente deixam traumas. Cuidemo-nos, pois.
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