No começo dos anos 1990, Jô Soares não era uma figura de todo insuportável. Apresentava um simpático programa de entrevistas no SBT, com a vantagem de ser ele um pouco menos afetado e, principalmente, por não abrir espaço para “meninas” tagarelas falarem bobagem.
Ele apresentava também um programa de jazz no rádio. Só apresentava mesmo. A produção e o texto ficavam a cargo de outra pessoa, mas o nosso Jô, vaidoso e cara-de-pau que só ele, não nos avisava, de modo que muitos pensavam que todo o conhecimento e o bom gosto jazzístico provinham dele mesmo!
Foi no programa radiofônico apresentado por ele que ouvi pela primeira vez, na íntegra, este importantíssimo Duke Ellington & John Coltrane. Ele havia sido lançado no Brasil à época, tanto no formato LP quanto em CD, mas sumiu das prateleiras rapidinho. O autor destas maldigitadas, portanto, vivia desde então uma longa e dolorosa espera, haja vista que não o encontrava nos sebos, tampouco conseguia pagar os preços proibitivos dos importados - isso quando aparecia...
Mas, final e felizmente, a lacuna foi preenchida! Consegui achar o CD, numa bela edição, por preço não tão extorsivo. Não quis arriscar de não levar. Vai que a gangue da FIESP, auxiliada pela mídia sem assunto, consegue pressionar o frouxo governo brasileiro, a ponto de obrigá-lo a intervir no câmbio, encarecendo, da noite para o dia, esses nossos pequenos objetos do desejo!
Exatamente no dia 17 de setembro de 1962, Duke Ellington havia participado das sessões que originariam o absolutamente clássico Money Jungle, para o selo Blue Note, ao lado da perfeita cozinha de Charlie Mingus e Max Roach. Decerto o leitor já está acostumado com nossa falta de imaginação, expressa pelo abuso de clichês; sentimos muito, mas vai mais um: aquele foi o típico encontro de mestre e discípulos. Ellington já estava, a bem dizer, na sua quarta década jazzística, mas aceitava humildemente a companhia de músicos que, embora experientes, estavam em pleno auge criativo, fazendo história no gênero. O encontro do velho e do novo (mais chavão!) proporcionou um disco denso, tradicional e vanguadista a um só tempo, ademais com um toque levemente erudito.
A menção à experiência de Money Jungle se justifica porque ela antecipa, em apenas nove dias, novo encontro genial de duas gerações. Desta feita para o selo Impulse!, o maestro se encontra com a grande sensação da época, o já cultuado John Coltrane. Mas não se trata somente de Coltrane; em verdade, Ellington, em pelo menos três faixas, se junta ao grupo do saxofonista, à época formado pelo baixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones. Na prática, é como se Coltrane fosse gravar um disco próprio, substituindo o pianista McCoy Tyner por ninguém menos que Duke Ellington. Apesar da genialidade do quarteto que deu ao mundo discos como A Love Supreme, penso que ninguém reclamaria de uma troca dessas!
Além do baixista e do baterista de Coltrane, revezam-se nas faixas o baixista Aaron Bell e o baterista Sam Woodyard, na competente produção de Bob Thiele. A propósito, muitos dos responsáveis pelas sessões de jazz, especialmente nos anos 1950 e 1960, mereceriam, em alguns casos, dividir os créditos com os artistas cujos discos produzem, tamanha a influência que têm no desenho dos álbuns.
Dentre as inúmeras qualidades do disco, há uma que não pode deixar de ser mencionada – e que se dane se ela for outro clichê! Trata-se da aparente tentativa empreendida por John Coltrane de ficar à sombra de Duke Ellington. Desnecessário dizer que o saxofonista não consegue! Isso fica muito latente na beleza atemporal do standard “In a Sentimental Mood”, quando o sopro de Coltrane tenta ser contido, mas parece se sentir convidado a “perder as estribeiras”, graças ao toque moderno, arrojado de Duke Ellington, semelhante, no mais, ao modo de tocar presente no citado Money Jungle. Mas não precisava mesmo de tanta reverência, afinal Ellington sabia com quem estava lidando. O maestro honrou o companheiro de disco com a exuberante “Take the Coltrane”, homenagem que é um belo trocadilho com a famosa “Take the A-Train”, tema clássico do repertório de Ellington, escrito por Billy Strayhorn, compositor que, aliás, aparece no disco com “My Little Brown Book”.
Por conta da coesão e da mistura perfeita de simplicidade e arrojo, talvez seja o caso de dizer que este é mais um dos – muitos – discos que podem servir para aqueles que querem se iniciar no maravilhoso – e não tão difícil como dizem – mundo do jazz. Desejo que sua espera seja menor e menos amarga do que a minha.
Ouça "Take the Coltrane", composta por Ellington. Além dos dois gênios da música do século XX, temos, na faixa, o baixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones. A gravação é de 26 de setembro de 1962. As fotos são de Bob Guiraldini.
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