sábado, 26 de dezembro de 2009

Free Jazz, 50 anos

Neste fim de 2009, a Folha On Line destacou, oportunamente, os 50 anos do movimento musical chamado Free Jazz. Houve, todavia, uma pequena gafe: a chamada na página principal falava nos “50 anos do ‘Festival’ Free Jazz”! O jovem responsável pelas manchetes certamente pensou que a comemoração se referia ao famoso festival jazzístico realizado nos anos 1980 e 1990, no Rio e em São Paulo, e não no radical subgênero do jazz. Como consolo, vale recordar a história – não sei se verdadeira – de que o gênio Ornette Coleman, convidado a participar de uma edição do Free Jazz Festival na década de 1990, empolgou-se com o que ele pensou tratar-se de um encontro inteirinho dedicado ao gênero “free jazz”, realizado no Brasil. Até que contaram para ele acerca da famosa marca de cigarros, patrocinadora do evento!

Acertadamente, o sítio da Folha viu o ano de 1959 como fundamental para o estilo free jazz, ainda que muitos enxerguem o alicerce do gênero nalgumas interpretações atonais de Lennie Tristano, na passagem dos 1940 para os 1950. Em verdade, 1959 não foi importante somente para o free jazz, foi um ano singular para o jazz de maneira geral: ano de lançamento de Giant Steps, de John Coltrane, Kind of Blue, de Miles Davis, Mingus Ah Um, de Charlie Mingus, Time Out, de Dave Brubeck, entre outros. No caso específico do free jazz, é digna de atenção a proficuidade criativa, naquele ano, do nosso já mencionado Ornette Coleman.

Após um disco relativamente “normal” pela Contemporary, Something Else!!!!(1958), Coleman lançou, no ano seguinte, outro álbum pela gravadora, ainda no mesmo caminho, mas radicalizando nos “gritos”, "risadas" e “choros” de seu saxofone: Tomorrow is the Question. Ainda no ano de 1959, entraria duas vezes em estúdios de Hollywood, com o fim de gravar, para o selo Atlantic, as sessões que resultariam nos álbuns The Shape of Jazz to Come, lançado no mesmo ano, e Change of the Century, editado no ano seguinte. Sob essa ótica, tem-se, com efeito, que as pedras incontroversamente fundamentais do que viria a ser chamado de free jazz foram realmente assentadas há 50 anos.

Todo o atonalismo, as incontidas improvisações, a radicalização dos ensinamentos de Charlie Parker e, claro, a pura liberdade no ato de executar ganhariam timbres bem mais acentuados nos discos que seriam lançados nos anos 1960, dentre eles exatamente o famoso Free Jazz, álbum que intitularia o gênero que ora homenageamos. A capa de Free Jazz já chamava a atenção com o belo quadro “White Light”, de Jackson Pollock. Talvez esteja aí parte do que nos permite entender um pouco do processo criativo de Coleman àquela época. Veja o que ele diz acerca de suas canções, conforme contado a Gary Kramer, em texto da contracapa do disco Change of the Century:

(...). Uma é completamente diferente da outra, mas, de certa forma, não há começo nem fim para cada uma de minhas composições. Há uma continuidade de expressão, fios de pensamento que amarram todas as minhas canções. Talvez seja algo como as pinturas de Jackson Pollock.

Não se deve negligenciar parte do aspecto político, que contrapunha o novo jazz, realizado sob os auspícios dos caminhos abertos por Parker, ao jazz mainstream, já abraçado pelos brancos, já devidamente abraçado ao gosto dito elitista, afastado de suas origens negras. Entretanto, Coleman mirava a reinvenção e o progresso no jazz, percebendo que mesmo a revolução capitaneada por Charlie Parker poderia, dependendo do que se fizesse com ela, ter um efeito conservador. Na mesma contracapa de Change of the Century, Gary Kramer reproduz as palavras de Ornette Coleman, acerca da faixa sintomaticamente denominada “Bird Food”:

“Bird Food” tem ecos do estilo de Charlie Parker. Bird [alcunha de Parker] nos teria compreendido. Ele teria aprovado nossa aspiração a algo além do que ele nos legou. Estranhamente, no entanto, a idolatria acerca de Bird, com as pessoas querendo tocar exatamente como ele, e não fazer sua própria busca interior, tem, definitivamente, sido um impedimento para o progresso no jazz.

Impossível não pensar em Karl Marx. A revolução não pode ser um fim em si mesma. As contradições continuam existindo, e o progresso é sempre possível e necessário. Coleman realmente acreditava nisso, tanto que, inquietamente, continuaria radicalizando, ora com a formação de quartetos duplos, ora tocando violino de forma sui generis, outrora com a formação dos grupos harmolódicos.

Além de Ornette Coleman, contribuíram para a revolução representada pelo free jazz nomes como John Coltrane, Don Cherry, Albert Ayler, Archie Shepp, Sunny Murray, Cecil Taylor, Art Ensemble of Chicago, Eric Dolphy, Charlie Haden, Peter Brötzmann, Roscoe Mitchell etc. A história e as motivações do gênero são muitíssimo interessantes; mas o melhor de tudo é ouvir!

Ouça abaixo a beleza atemporal do free jazz, em dois importantes momentos de sua história: do que se pode chamar de primeiros passos do gênero, ouviremos o saxofonista Ornette Coleman, acompanhado pelo trompetista Don Cherry, pelo baixista Charlie Haden e pelo baterista Billy Higgins, interpretando a faixa “Eventually”, do álbum The Shape of Jazz to Come, gravação realizada em 22.05.1959.
Na sequência, ouviremos o também saxofonista Albert Ayler, do álbum Spirits Rejoice (1966), gravação de 23.09.1965, tocando "Prophet", com destaque para a bateria de Sunny Murray e ao duo de contrabaixistas Henry Grimes e Gary Peacock.

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