sábado, 14 de maio de 2016

Faustus Sapienza: Memórias do golpe

Mais um texto de Faustus "Mestre" Sapienza. Um curioso exercício de futurologia. O que se falará do golpe de 2016 daqui a alguns anos? Pistas na pequena ficção (ficção?) a seguir.

Lembram-se do golpe de 2016? Entrevista em 2038
Faustus "Mestre" Sapienza
Gravando. Ok. De novo. Gravando. Ok.
22 de outubro de 2038.
Curso de História. Universidade digital. Doutorado. Título: "2012-2016: um golpe nem tão suave num Brasil que se acreditava solidamente democrático". Vamos entrevistar o ex-deputado federal Pitombo Macieira, mais conhecido como Bobrinha. Ele foi um dos deputados que votaram a favor do prosseguimento do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016.
- Boa tarde, deputado. Obrigado pela entrevista. Vai ser muito útil para o trabalho que estamos desenvolvendo. Posso chamar o senhor de deputado mesmo?
- Rapaz, já larguei a política, como você sabe, mas todo mundo que fala comigo me chama de deputado. Até estranho quando me dão outra qualificação. 
- Muito bem. O senhor estava naquele famoso 17 de abril de 2016...
- 18 de abril. Era um domingo... Quente...
- Desculpa, deputado. Certeza que era 17.
- Bem, já faz mais de vinte anos e o historiador aqui é você. Mas que era 18, era!
- 17, deputado! Mas, enfim, naquela famosa tarde/noite de abril de 2016 o senhor votou a favor da abertura do processo contra a então presidente Dilma. Não tem sido incomum declarações de deputados e outras pessoas envolvidas demonstrando arrependimento ou tentando até renegar a participação em tudo aquilo. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
- Olha, filho, apesar de moço experiente e tudo mais, você é jovem e merece uma lição, até na sua qualidade de estudioso da história, da política e coisa e tal. A noção de importância histórica só se tem com o tempo. A gente às vezes até faz uma coisa que sabe que é errada mas não tem a dimensão do erro que está cometendo. Do tamanho que aquilo vai ganhar depois de uns anos. É muito o aqui agora...
- Por sua fala posso presumir que o senhor reconhece que foi um erro. E mais - se eu estiver errado, me corrija -, o senhor parece estar querendo dizer que já sabia que estava errando quando proferiu o voto, mas resolveu arriscar.
- Com certeza. E posso lhe garantir que muitos de meus colegas sabiam do erro que estavam cometendo.
- Mas, deputado...
- Por favor, não pense que eu estou acusando alguém de ter feito qualquer coisa errada... É... Assim do tipo... Você sabe. Tem muita história que rolou, que rola até hoje, mas eu não gosto de ficar especulando. Na verdade muito deputado só foi pela onda mesmo. E vou te falar, até em coisas que pareciam bobagem na época já havia sinais de pressões de diversas ordens.
- Como assim?
- Lembra que os votos eram dedicados a familiares, eram em nome de Deus...
- O senhor, por exemplo, além de Deus, dedicou para sua mulher, sua filha... Melhor, eu vou acionar o index eletrônico aqui e em menos de dois segundos eu encontro sua fala. Vamos ver?
- Não, filho, por favor, eu lembro muito bem de meu voto. Não gosto mais de ver. De fato dediquei à minha mulher daquela época. Era minha segunda mulher. A gente estava enfrentando uns probleminhas, por culpa minha. A verdade é que... Bem, não quero falar muito sobre isso, mas eu vinha já de umas atitudes não muito... Mas não adiantou muito. Ela continuou com a cara virada comigo, tanto que ainda naquela legislatura a gente se divorciou. E a minha filha era filha do meu primeiro casamento, hoje é deputada estadual, bastante conhecida. Também quis com aquilo fazer um agrado pra ela, já que ela não falava comigo tinha um tempo. Soube depois que ela nem ficou sabendo de nada porque não assistiu nem se interessava por nada daquilo naquele tempo. Ela era daqueles jovens que odiavam a política e que jamais perderiam um domingo vendo um monte de figura excêntrica - meus pares que me perdoem - fazendo um espetáculo grotesco daqueles. Mas, vem cá, o mais importante veio depois.
- Sim?
- No meu voto, depois de mulher e filha, meu tom de voz até aumenta para eu dedicar aquele ato também ao povo de meu estado e aos meus eleitores. Deixei bem claro que aquele voto era por eles.
- Não somente o senhor. Muitos repetiram o gesto, afirmando que o voto era pelas pessoas de suas cidades, estados.
- Exatamente. Isso não era trivial. Entende por quê?
- Se o senhor quiser explicar.
- No meu caso e de muitos outros que me confessaram, aquilo era uma forma de dizer que cometíamos aquele ato injusto por pressão da sociedade. Era para dizer que não estávamos fazendo de acordo com nossa consciência. Estava-se cometendo uma injustiça por absoluta culpa do povo. Era uma insinuação de que havia pressão externa.
- Mas, deputado, o senhor era de um estado que tinha dado maioria absoluta para Dilma, no qual não havia uma oposição orgânica a ela e a seu partido. Entidades representativas da sociedade civil em sua maioria eram contra o golpe, desculpa, impeachment...
- Pode chamar de golpe, filho. Eu sei que você acha que foi golpe mesmo. Todo mundo fala que foi golpe. Então é golpe, ora!
- Pois, então, já havia uma clara articulação contra o golpe; o apoio popular, segundo as pesquisas, vinha diminuindo...
- É que era um movimento de ricos e classe média alta. Quando eu dizia povo do meu estado, eu estava falando do sujeito que frequentava o mesmo restaurante que eu, que usava a primeira classe do mesmo voo que eu... Até havia uma coisa que chamavam de redes sociais, não sei se você chegou a conhecer. Pois bem, naquelas tais redes havia uma articulação poderosa, que pressionava, até ameaçava... Tudo alimentado pela mídia.
- E qual o papel da mídia nisso tudo?
- Filho meu, vou resumir. O deputado mais honesto teria sido aquele que, em vez de mulher, filho, Deus, povo etc, tivesse dedicado o seu 'sim' para a mídia. Em nome da mídia, eu voto sim. Seria o deputado que resumiria bem aquele fato histórico.
- A mídia foi a cabeça daquela articulação?
- Sim. A mídia e, como todos sabem, o Poder Judiciário de então. A judicialização da política, a criminalização da atividade política... Essas coisas todas facilitaram nossa vida naquela empreitada. É... Mas deixa eu te perguntar...
- Pois não.
- Eu estou proibido de fumar, filho. Não deixam cigarro chegar perto de mim. Será que você não tem um cigarro para me dar aí, não?
- Não fumo, deputado.
- Tudo bem.