sábado, 31 de maio de 2008

Chico Buarque de Hollanda Instrumental, com Luiz Loy Quinteto*


Um dos maiores pensadores brasileiros de todos os tempos, Sérgio Buarque de Hollanda passou a se apresentar nos anos 1960, dentre outras coisas, como o pai do Chico! Com efeito, quando nos debruçamos sobre aquele período histórico, conseguimos ter uma vaga idéia da forma arrebatadora que o cantor e compositor carioca adentrou a cena musical brasileira. Logo de cara já tendo seu trabalho gravado e regravado por muita gente grande da MPB, neste álbum o artista conhece leituras instrumentais de alguns de seus primeiros clássicos.

O próprio Chico Buarque escreveu as notas de contracapa do lançamento original de 1967, devidamente reproduzidas nesta reedição de dois anos depois. Diz ele que “as palavras seriam inúteis, quase constrangedoras, neste LP”. E olha que se trata de afirmação vinda de um grande letrista...

E Chico tinha razão: o samba-jazz competentíssimo do quinteto do pianista Luiz Loy prescindiu das palavras. Os melhores momentos foram propiciados pelo piston e pelo sax-tenor de Papudinho e Mazzola, respectivamente, os quais dão ao disco um sabor de jazz e gafieira a um só tempo. Na faixa que encerra o álbum, “Tem Mais Samba”, o grupo se supera, com o baixo de Bandeira dialogando com o piano de Loy e com a bateria de Zinho, secundado pelos já citados metais. Só ela já valeria o disco; nem precisaria das magníficas versões de “Sonho de um Carnaval”, “Amanhã, Ninguém Sabe”, “A Rita”, “Madalena Foi Pro Mar”, ...
*Originalmente publicado no RateYourMusic.

Para não dizer que não falamos de contrastes

Nas últimas semanas tem-se visto uma firme atuação de funcionários de um programa da prefeitura de São Paulo chamado “São Paulo Protege”. Eles têm trabalhado com os moradores de rua da região central da maior e mais rica cidade brasileira. Este blog ainda não conseguiu apurar qual é exatamente o objetivo do programa, mas se sabe que já de longa data as secretarias municipais responsáveis por áreas de desenvolvimento e promoção social agem junto ao contingente de excluídos do município, fazendo levantamentos, oferecendo vagas em abrigos, tentando convencê-los a ir para albergues etc.

É sempre importante falar da desigualdade brutal verificada na maior metrópole do país, embora o tema soe no mais das vezes repetitivo, estéril, maçante. Em poucos minutos de caminhada por ruas importantes da megalópole, vêem-se pessoas apressadas literalmente pulando corpos deitados na calçada, ou crianças e adolescentes pedindo dinheiro, não raro de forma intimidatória.

Entristece ver tal situação num país que, nesta semana, recebeu mais um “grau de investimento” de notável agência de riscos. Não se trata de ser amargo e mal-humorado como um Clóvis Rossi, ou de ser derrotista como a maior parte da classe média brasileira, incapaz de ver quão melhor está o país nos últimos anos. Como bem gostam de lembrar o chanceler Celso Amorim e o presidente Lula, o resto do mundo tem avaliado o Brasil de tal maneira que, se alguém lê sobre o país na imprensa brasileira e estrangeira concomitantemente, pensa que se está falando de países absolutamente diferentes. De qualquer forma, é absolutamente imprescindível vencer as desigualdades: não podemos continuar eternamente aceitando a condição de país de contrastes.

Vejam só: assistindo à programação do canal BandNews na noite de sexta dia 30, fiquei estupefato com a notícia de um posto de gasolina em Diadema assaltado dezenas de vezes por uma quadrilha que contemplava um garoto de 12 anos e também pela divulgação, por parte do IBGE e do IPEA, de que mais de 30 milhões de brasileiros não são atendidos por serviço de esgoto. Entre uma e outra, o noticioso do Grupo Bandeirantes apresentou uma reportagem acerca da espera que pretendentes de caminhões zero quilômetro estão tendo que amargar, pois a indústria nacional não está conseguindo atender à crescente demanda!

No dia anterior, quinta-feira 29, havia várias viaturas do já citado “São Paulo Protege” estacionadas na Praça Pedro Lessa, na região do Anhangabaú. Há, no local, diversas pessoas em “condição de rua”, como “eufemisticamente” se vem falando desses grupos de excluídos, certamente sendo atendidas pelo programa paulistano. Subindo a pé para a XV de Novembro via-se outro grupo de pessoas reunido. Este formava uma fila em frente à BOVESPA. Era de gente que aguardava a chamada para assistir a apresentação de como funciona a Bolsa. É o contingente de “incluídos” querendo também “incluir-se” no rol dos que participam da festa do mercado de ações brasileiro, o qual gira bilhões de reais todos os dias e que bate sucessivos recordes a toda hora.

À noite, a poucos metros de uma das maiores universidades da zona leste da capital paulista, vê-se um homem que dorme na calçada, sob o toldo de um comércio. À sua “cabeceira” tem-se uma mochila, o que parece indicar que este morador de rua talvez leve uma “vida normal” durante o dia. Recostado no canto, ele atrapalha muito pouco os jovens estudantes que se dirigem para os estacionamentos que ficam naquela mesma rua.

Em uma visita a São Paulo alguns anos atrás, o filósofo alemão Jürgen Habermas, ao ver a cidade cheia de indústrias ao lado de favelas, perguntou como era possível se viver e pensar num país desses. Tal inquietação não é privilégio de intelectuais: há um ano, minha esposa recebeu duas turistas peruanas. As moças ficaram incomodadas com a quantidade de pessoas morando nas ruas. A indignação delas, no entanto, não foi por vê-los nos trechos mais decadentes da região central, mas ao constatar que também os havia nas modernas imediações da Paulista.

Não há negar que o capitalismo, sobretudo o tardio, é produtor de tais desigualdades e que muitos de seus problemas estruturais provocam esse estado de coisas – já tivemos oportunidade de falar disto noutras oportunidades e talvez não caiba repisá-lo aqui. Mas é possível, mesmo dentro da lógica do sistema, diminuir as diferenças ao nível da decência. Para tanto, muitas coisas são necessárias, vontade política dentre elas. Mas e quanto a nós, será que nossa capacidade de indignação não anda um pouco atrofiada? Por acaso não temos achado um pouco normal demais andar pelas ruas pulando corpos?

Talvez estejamos tão ocupados prestando atenção na Bolsa ou encomendando caminhões, que não sobra tempo para nos preocuparmos com a população “em condição” de rua.

sábado, 24 de maio de 2008

Os "chatos" que se atrevem a escrever sobre música

A Internet deu oportunidade para qualquer um falar as besteiras que quiser: lendo este blog o leitor talvez encontre subsídios para confirmar a sentença! Mas talvez o leitor generosamente diga que nem tudo o que os mortais, cidadãos comuns, pessoas quaisquer andam escrevendo na net seja tão indigno de nota assim. Já pessoas como Eliane Cantanhêde parecem não gostar muito do fenômeno dos blogs, talvez porque seus titulares, ao contrário dela, mas em consonância com os especialistas, não pensem que as pessoas devam se vacinar desnecessariamente contra febre amarela, ou, o que é mais provável, talvez porque não goste do fato de os blogueiros ficarem descobrindo que colunistas políticos são casados com profissionais que trabalham para o PSDB... Carlos Heitor Cony é outro que vê no fenômeno da "blogosfera" somente um espaço para "chatos" ficarem dando opinião sobre política, economia, cultura etc. No caso de Cony, porém, é possível que não haja nada demais na sua bronca, talvez ela seja apenas um ato de corporativismo mesmo.

Sobre o assunto música, há muito blog bacana por aí. Mas o melhor site da área é, em verdade, uma comunidade internacional de interessados no tema: Rate Your Music. Trata-se de uma página em que os inscritos contribuem inserindo artistas, álbuns, perfis, e produzindo listas e resenhas. Não há uma única informação do excepcional banco de dados do RYM que não tenha sido postada por seus usuários.

Por se tratar de uma comunidade internacional, os seus participantes estão liberados a escrever resenhas em todas as línguas. Há um bom contingente dos que o fazem na língua de Camões, Pessoa e Machado. E devo dizer – sorry, Cony! – que muitas delas superam de longe boa parte do que se lê na mídia dita especializada.

Um dedicado "RYMer" fez uma lista com o que ele considera ser as melhores resenhas escritas em português para o site. Confira aqui e veja se boa parte delas (escritas por diletantes) não está realmente num patamar muito acima do da maioria de que se lê nalguns periódicos por aí. E para deixar a lista ainda mais insuspeita, o seu autor, se não me engano, é também colaborador de publicações, por assim dizer, mais “oficiais”.

Boa leitura!

Questão de tempo

Recentemente, um colega aluno da gloriosa Escola de Sociologia e Política de São Paulo declarou-me quão interessante considerava o fato de as idéias políticas do inglês John Locke (1632-1704), sobretudo as expressas no Segundo tratado sobre o governo, lhe soarem mais atuais, mais “digeríveis” do que as presentes no pensamento do genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), especialmente as desenvolvidas no seu Contrato social. Como se vê, este é posterior àquele, e, pensando de forma absolutamente linear, talvez fosse mesmo de se esperar que Rousseau trouxesse elementos que nos explicassem melhor o mundo num grau mais refinado do que os trazidos à luz por Locke.

Fazemos nosso julgamento não apenas conforme nossas próprias idéias – ou as idéias dominantes de nosso tempo -, mas também de olho na realidade que nos cerca. Por isso, conceitos como “vontade geral” e “liberdade como dever”, por exemplo, parecem-nos mais difíceis de entender do que a idéia de que a sociedade política foi formada a partir da associação de homens livres que o fizeram para melhor garantir seus direitos, sua vida e sua propriedade, o que é, grosseiramente falando, uma carta de intenções de características liberais. Daí a melhor compreensão e conseqüente aceitação de Locke.

Mas ater-se à linha do tempo para cobrar a atualidade do pensamento dos filósofos talvez não seja o melhor expediente. Como já dissemos, tal leitura vai depender da forma como enxergamos o mundo e da realidade concreta que nos circunda. Se a memória não me prega uma peça, no final dos anos 1980 ou início dos 90, a revista Exame fez uma matéria na qual dizia que Karl Marx, um pensador do século XIX, tinha virado algo como um calhambeque, ao passo que Adam Smith (século XVIII) parecia uma espécie de carro possante de última geração. A metáfora era bastante clara: naquele momento de esfacelamento do chamado “socialismo real” e da aparente universalidade da solução neoliberal, as idéias de mais de duzentos anos do inglês pareciam dar melhores respostas ao mundo do que os princípios enunciados pelo grande pensador alemão somente um pouco mais de século antes. Todavia, passados quase vinte anos da publicação daquela revista, uma busca de atualidade para o pensamento de Adam Smith seria colocada em xeque caso nos ativéssemos à crise subprime americana, afinal, o “mercado” não vem se auto-regulando para resolver tal problema, e, em vez da “mão invisível”, o que se tem é a “mãozinha” dos bancos centrais mundo afora; e o mais interessante é que ninguém parece estar reclamando de tanto intervencionismo oficial!

Outra questão do mundo atual, o problema dos alimentos, parece estar provocando a redescoberta de Thomas Robert Malthus. O ex-presidente José Sarney lembrou-se dele em artigo sobre o tema para a Folha de São Paulo. Não há muito se dizia uma perda de tempo considerar as assertivas do sacerdote economista. Muitos asseveravam que, dentre outras coisas, a tecnologia não permitiria jamais que o sombrio prognóstico malthusiano se verificasse na prática. Muitos críticos sequer consideravam o fato de que o próprio Malthus entrevia que sua visão pessimista, ou seja, o aumento da população a níveis acima da capacidade da natureza de lhe oferecer subsistência, sofreria alguns “freios positivos”, a saber, miséria, fome, morte, epidemias, lutas etc. que, em última análise, seriam moderadores naturais exatamente do risco de aumento da população a cifras catastróficas. Mas, de todo modo, atualmente não parece estar havendo problemas em citar o velho Malthus em discussões intelectuais, pois se trata de uma época em que se encontra dificuldade de produzir alimentos suficientes para se “vender” a todos habitantes do mundo, o que, guardadas as devidas proporções, traz alguma atualidade ao clássico Ensaio sobre a população, de 1798.

Os pensamentos vão e vêm; são representativos para uns, renegáveis para outros; o que serve num dado momento histórico é repudiado no outro. E a linha histórica no tempo nem sempre é bom juiz...

sexta-feira, 23 de maio de 2008

John Scofield no Sesc Vila Mariana


O guitarrista norte-americano John Scofield fez duas apresentações no dia 22-05-2008 no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Primeiramente, foi marcado um espetáculo único para as 18 horas. Com ingressos esgotados nos primeiros dias após a abertura das vendas, o Sesc conseguiu fechar um show extra para o mesmo dia às 21 horas.


Este escriba teve o privilégio de assistir ao concerto extra do sexteto do músico estadunidense.


O guitarrista esbanjou talento apresentando músicas de seu mais recente trabalho, intitulado This Meets That. O título do álbum veio a calhar: de fato, como restou demonstrado nesta noite, o jazz interpretado pelo sexteto de Scofield promove encontros que vão do rock ao funk, passando pelo blues, pelo groove e pelo folk (no caso deste último não tanto pela música, mas pelo conceito, haja vista que a abertura do espetáculo foi com a tradicional "House of the Rising Sun").


No início da apresentação, a ênfase foi dada ao trabalho de guitarra, baixo e bateria, dando a entender que talvez o trio de metais seria um tanto figurativo. Ledo engano! Quando começaram as intervenções do sax, trompete e clarinete, o show tornou-se mais encorpado, e o público, que já estava animado, ficou absolutamente eufórico.


John Scofield é um guitarrista que já tem seu nome na história do jazz. De qualquer forma, é difícil não reconhecer algumas de suas influências no decorrer da apresentação: Wes Montgomery, Grant Green, Kenny Burrell e até mesmo o velho Hendrix. Sem dúvida que a responsabilidade é muita!


Grande guitarrista, grande banda, grande show!

sábado, 17 de maio de 2008

Marina, os "ambientalistas" e os "desenvolvimentistas"

Ouviram-se diversos lamentos pela saída de Marina Silva da liderança do Ministério do Meio Ambiente. Surpreendentemente muitas das lamentações vieram de gente ligada à oposição e parte do tom lamentoso foi ouvido também na imprensa brasileira. É algo estranho, pois a ex-ministra sempre foi alvo de críticas de grupos que, dentre outras coisas, chegaram a acusá-la - e o seu ministério - pelo tal “crescimento econômico superior apenas ao do Haiti” que o Brasil apresentara alguns anos atrás. O então medíocre crescimento, nas palavras de um jornal paulistano, era a “vingança dos ecologistas”. Segundo o mesmo órgão, o presidente Lula somente não dispensava Marina por conta de sua grande dificuldade de demitir os amigos. Porém, após a demissão a pedido da ministra, o que se viu foi um desfile de elogios e um clima de solidariedade à demissionária.

A hipocrisia da imprensa brasileira, aliada ao cinismo dos políticos, não é algo que deva nos fazer perder tempo no momento; por isso, talvez valha a pena analisar um interessante aspecto que perpassa essa questão.

Marina Silva foi, em verdade, o pivô da briga de grupos supostamente adversários, em geral denominados ambientalistas e desenvolvimentistas. De cara já aparece um sério problema sócio-político-econômico, pois tal disputa sugere que o “ambientalista” opõe-se ao desenvolvimento, ao passo que o “desenvolvimentista” não se preocupa com as questões ecológicas, o que evidentemente está longe de uma situação ideal, afinal o desenvolvimento econômico deveria estar associado à preservação ambiental. E o pior de tudo é que talvez as premissas dessa dicotomia sejam verdadeiras, o que torna a realidade que nos cerca mais e mais sombria.

Com efeito, como já há alguns anos alertou-me o geógrafo Douglas Santos, o “tema ecologia só entrou em cena quando ficou claro que o capital se reproduzia num ritmo muito mais alucinante do que a capacidade da natureza”. Noutras palavras, a dilapidação do meio ambiente, que em última análise pode acabar com a vida na Terra ou ao menos degradar significativamente sua qualidade, traria no meio-tempo problemas para a lógica da acumulação de capital, dependente em algum grau da transformação da natureza, e isso, segundo o professor Douglas, é que teria emprestado o caráter de urgência ao assunto.

Os grupos ora denominados desenvolvimentistas são aqueles que reclamam, por exemplo, das dificuldades burocráticas em se conceder licenças ambientais para vultosas obras de infra-estrutura, são os que não escondem achar que vale a pena algum desmatamento se for em prol da produção de itens que atraiam divisas e gerem empregos, são os que acreditam que a ciência e a tecnologia darão respostas satisfatórias, num futuro próximo, aos problemas ambientais de hoje, como o aquecimento global, por exemplo.

O problema ecológico, portanto, passa pela questão do modelo de desenvolvimento econômico, pelo ritmo de crescimento, pelas questões prioritárias no que se refere à sobrevivência. Trata-se, em suma, de uma questão econômica.

Analisar o assunto do ponto de vista prático pode mexer com a boa consciência humana e trazer doses cavalares de preocupação: decerto que se é de lastimar que as pessoas diretamente envolvidas provavelmente prefeririam empregos à preservação de florestas; ou que se pense nos Estados Unidos, país que não assina o famigerado Protocolo de Kyoto porque não quer pagar o preço político de ter que repensar sua política industrial, com possível diminuição, ainda que marginal, de sua atividade econômica. Ora, é relativamente natural que as pessoas se preocupem apenas com o “hoje”, e é normal que as autoridades da maior potência econômica do planeta não queiram ser acusadas de podadoras do livre desenvolvimento de seu país. Com isso, o futuro é incerto.

Este blogueiro, adepto do estilo “zé povão”, sente uma necessidade danada de simplesmente dizer que “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”! Outros, um pouco mais refinados, vêem nessa situação um desdobramento da “crise estrutural do capitalismo”. Tal crise apresenta-se, em linhas gerais, nas situações em que parece que o sistema vai engolir-se a si mesmo, autodestruir-se, ou, também, quando se tem a impressão de que as desgraças provêm justamente da radicalização das propostas do modelo (superprodução, consumismo, concorrência predatória, ou, no nosso caso, o desastre ecológico proveniente dos “êxitos” dos investimentos produtivos).

A bem da verdade, dia desses atrevi-me, sim, caro leitor, a usar a expressão “crise estrutural do capitalismo” com um nobre professor da USP. O mestre riu-se às minhas custas. Disse que tal termo é um absurdo, sem contudo explicar por que acha isso. Também o jornalista Luciano Martins Costa, por conta de texto publicado no Observatório da Imprensa, no qual afirmava que uma discussão ecológica séria teria de obrigatoriamente passar pela rediscussão dos modelos de desenvolvimento, incluindo nisso uma crítica ao capitalismo, teve que agüentar muitos comentaristas apaixonados, os quais afirmavam – sem muita argumentação, é verdade – que a questão ambiental nada tinha que ver com capitalismo. Talvez o Luciano e eu estejamos errados. Tomara que o professor da USP e os leitores do Observatório realmente estejam com a razão; aliás, especialmente estes últimos precisavam urgentemente convencer Bush a assinar o já citado Protocolo de Kyoto!

sábado, 10 de maio de 2008

Senador kantiano

O senador democrata José Agripino Maia deve ser grande entusiasta das idéias do filósofo Immanuel Kant (1724-1804). Nesta semana, Agripino sugeriu que a ministra Dilma Roussef pode ter mentido em relação ao dossiê das tapiocas do ex-presidente FHC, baseado no fato de que ela mentira para os seus torturadores durante o período do regime militar.

Na sua Crítica da razão prática, Kant lança os "imperativos categóricos", os quais devem ter exercido grande influência sobre a vida e o modo de pensar do senador potiguar. O imperativo categórico desvincula-se de qualquer condição. Sua formulação é a seguinte: “age de tal maneira que o motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal”. Ora, diria Agripino, se a ministra mentiu sob tortura para aqueles que tentavam lhe tirar a verdade à força, certamente que mente em quaisquer circunstâncias. E a decepção do senador talvez seja ainda maior pelo fato de a titular da Casa Civil não ter, ela mesma, buscado universalizar seu ato e conseqüentemente ter chegado à conclusão que o fato de ela mentir poderia deixar todo mundo sob suspeita, pois se alguém acha que mentir pode ser desculpável em certas situações, forçoso será concluir que não se pode confiar em ninguém.

O filósofo prussiano certamente não merece simplificação tão grosseira; e é certo também que o imperativo categórico é digno de críticas e é posto em xeque em qualquer sociedade complexa que se imagine.

Agripino Maia é, provavelmente, um “deontologista”, ou seja, considera a ética como um conjunto de normas definidas, e, desse modo, defende que, se uma família, na Alemanha sob o nazismo, escondesse judeus em casa, deveria entregá-los à Gestapo, caso a polícia fizesse uma busca na sua residência. O senador certamente não é adepto da concepção “conseqüencialista”, a qual não parte de regras morais, mas de objetivos. Para o conseqüencialismo, mentir, por exemplo, será mau em algumas circunstâncias e bom em outras, dependendo das conseqüências que o ato acarretar.

As idéias do parágrafo anterior são praticamente coladas do livro Ética prática, do filósofo australiano Peter Singer, o qual, por incrível que pareça, não deve ter sido lido pelo senador democrata nem por seus abnegados assessores e colaboradores. Aos que ficaram interessados, a editora é a Martins Fontes e o preço médio está na casa de 50 reais.

A verdadeira integração latino-americana

O presidente do Movimento dos Sem-Mídia, Eduardo Guimarães, no seu imperdível Cidadania.com, costuma mostrar-se decepcionado com o excesso de condescendência do presidente Lula e de seu governo com a desfaçatez da mídia tupiniquim. É bom que se diga, no entanto, que não é apenas a grande imprensa brasileira que comete desatinos e que tenta influenciar a vida política de forma muitas vezes nefasta: tal qualidade tem sido uma constante de toda a mídia latino-americana de que se tem notícia.

Mas sem dúvida o Eduardo e todos aqueles que com ele concordam ficariam contentes de ver a postura do presidente da Bolívia, Evo Morales. Na semana que antecedeu o polêmico referendo sobre a autonomia do Departamento de Santa Cruz, Morales concedeu uma entrevista à CNN en Español na qual disse com todas as letras, de forma destemida, que os meios de comunicação de seus país eram os seus principais opositores, fala praticamente impensável de sair da boca de seu colega brasileiro. Durante a entrevista, a própria apresentadora Patrícia Janiot ficou numa situação constrangedora, quando ao perguntar ao presidente boliviano se não seria uma provocação ter realizado nacionalizações de empresas justamente naquela semana, teve que ouvir do ex-cocaleiro que aquele tipo de indagação a aproximava de seus opositores, afinal, como se sabe, o 1º de maio foi a data escolhida para aquelas iniciativas meramente por conta de seu caráter simbólico (a ocupação das refinarias da Petrobras, por exemplo, deu-se na mesma data em 2006). No dia do referendo, em entrevista coletiva, o presidente Evo Morales voltou a falar da influência negativa da imprensa, mais notadamente a de Santa Cruz, para o desenvolvimento da Bolívia.

Uma reflexão possível é a de que se há uma integração na América do Sul é a dos principais meios de comunicação em defesa das políticas de direita, do combate aos governos populares da região e em prol das elites e oligarquias, que, não por acaso, são as mesmas que deram ao mundo justamente os controladores de tais meios. Por outro lado, a integração dos governos da região, ainda que próximos no campo ideológico, não parece ser tão forte do ponto de vista prático, presos que estão aos seus pragmatismos.

Não se trata, pois, de mera retórica ou de teorias superficiais as afirmações de que a direita se marca pela união de interesses e pelo discurso bem afinado, enquanto a esquerda é desunida, dotada de diagnósticos diversos e de propostas contraditórias entre si. Vê-se isso claramente ao analisar as práticas dos governos de esquerda na região, as quais muitas vezes ganham características de embate, e ao dar uma leitura nalguns dos principais jornais da região, sempre de postura editorial crítica a esses mesmos governos e de defesa da auto-regulação do mercado, de menos intervencionismo nos negócios, de aproximação com os Estados Unidos etc.

Um bom sinal, no entanto, é que o baronato da mídia - apesar de algumas importantes exceções, como o próprio caso do tal referendo de Santa Cruz - parece ter cada vez menos influência sobre os eleitores da região. É importante que continue assim.

sábado, 3 de maio de 2008

Terceiras intenções

É comum desejarmos o que não possuímos. Mas é difícil querermos algo que não sabemos ou de que nunca ouvimos falar. E é reservado aos visionários querer algo que ainda não foi inventado ou enunciado. Com efeito, seria praticamente impensável que nos anos 1950 um cidadão médio pensasse em – e desejasse – algo como a Internet, por exemplo.

O exemplo acima é um tanto radical; fiquemos com algo bem mais recente: a idéia do terceiro mandato para o presidente Lula. Segundo pesquisa CNT/Sensus divulgada esta semana, mais de 50% dos eleitores consultados são favoráveis a outra reeleição consecutiva ao presidente. Parece que já houve uma famosa colunista política que reprovou a sondagem do instituto, sob a alegação de que não se deveria perguntar aos eleitores sobre algo que não existe.

De fato, o mais normal seria que as pessoas simplesmente ignorassem tal questionamento, pois ele trata de algo que formalmente não poderia ocorrer, pois, até o momento, é vedado pela Constituição. O assunto, porém, existe. E existe por culpa da imprensa à qual nossa colunista pertence, além, é claro, por obra da oposição sem projeto. O leitor há de se lembrar que às vésperas das eleições de 2006, quando se acreditava que Lula seria reeleito presidente ainda no primeiro turno, nomes da oposição tentavam incutir na opinião pública o temor de que isso provocaria no presidente a tentação de mais um mandato consecutivo; com o segundo turno, mas com uma vitória esmagadora, analistas de dentro e de fora da mídia continuaram insistindo que a boa maré do presidente o levaria a desejar mais quatro anos; a inabalável popularidade de Lula e os bons números da economia não deixaram, desde 2006, que o fator “inexistente”, a possibilidade de terceiro mandato, saísse da pauta da imprensa. E é claro que já houve, por conseqüência disso tudo, deputado que apresentou projeto de mudança na Constituição com esse fim.

A Internet, outrora inexistente, passou a existir e popularizou-se. Hoje, muitos não sabem como viviam sem ela. Os muito novos não conseguem nem imaginar viver num mundo em que a famigerada rede não exista. De modo análogo, a possibilidade do terceiro mandato era incogitável há alguns anos. Aliás, mesmo uma única reeleição não era pensável no Brasil até a virada de mesa de FHC em 1997. A tese de terceiro mandato só passou a ganhar corpo, ora bolas, porque imprensa e oposição (que atualmente no Brasil formam uma coisa só) insistiram de forma nauseante no tema, sem perceber que isso se tratava de um elogio ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (insisto que se Lula realmente quisesse um terceiro mandato, mas fosse um presidente impopular, ninguém estaria dando muita bola ao assunto, ao contrário, muitos adorariam vê-lo sendo fragorosamente derrotado nas urnas). Enfim, a imprensa e a oposição criaram o tema “terceiro mandato”, e as pessoas, por seu turno, passaram a pensar nisso e, pelo jeito, começaram a gostar de uma idéia que, inegavelmente, existe.

Houve quem lembrasse a nossa colunista que a pergunta sobre o terceiro mandato do presidente já havia sido feita anteriormente por outro instituto: em pesquisa publicada em dezembro de 2007, o DataFolha apurara que 65% dos eleitores rechaçavam um outro mandato consecutivo para o atual ocupante do Planalto. O resultado foi manchete principal de uma edição dominical da Folha, mas, estranhamente, daquela feita ninguém reclamou do fato de o instituto fazer a pergunta sobre “algo inexistente”, tampouco alguém chiou com a iniciativa de o jornal estampar a sua primeira página com a “mula-sem-cabeça”. É muito provável, pois, que a nossa colunista não goste mesmo é do fato de que o povo simpatize com a possibilidade de mais um mandato para o presidente.

Assim não dá! O povo brasileiro precisa parar com essa mania de querer contrariar os nossos colunistas da mídia!