sábado, 20 de agosto de 2011

Corrupções

A recente grita acerca da corrupção - com a consequente "faxina" promovida pela presidenta Dilma Rousseff - é algo que mereceria ser visto com cautela.

Antes de mais, vale atentar-se a trecho de belo texto do filósofo Vladimir Safatle publicado na Folha de São Paulo em 12.07.2011, que, a pretexto de criticar o magnata das comunicações Rupert Murdoch, em realidade falava do modus operandi da imprensa brasileira, inclusive, é claro, da própria Folha, que teve de fingir que não era com ela. Leia:
(...)Murdoch tornou a produção de notícias setor de uma luta política onde reina a seletividade do escândalo.
Todos, em algum momento, fizeram algo que não gostariam de mostrar na esfera pública. Mas cabe ao jornal decidir quem vai ser exposto e quem será conservado, quem vai para a primeira página e quem vai para a nota do canto.
A lei "dois pesos, duas medidas" transforma-se em uma regra, adequando-se às exigências de uma sociedade do espetáculo.(...) [Poder em pane, grifos nossos]

Pois é assim. Qualquer um que acompanha a imprensa brasileira pode ter a falsa impressão de que só existe corrupção em nível federal. Se a Folha, por exemplo, quisesse, poderia transformar a vida do governo tucano de São Paulo num inferno por ter decidido levar adiante projeto da linha 5 do Metrô com empresas suspeitas de acerto. Imagine o leitor todo dia manchetes martelando a denúncia, com reprodução no restante da mídia ou no mínimo naquelas sediadas em São Paulo. Mas, ao contrário, o assunto - que aliás poderia ter trazido mais prestígio ao jornalismo investigativo da Folha - foi devidamente jogado para baixo do tapete, sob o silêncio obsequioso dos neoudenistas de plantão, até mesmo entre os razoavelmente informados sobre o cabeluda história.

A essa altura do campeonato já não há novidade quanto aos objetivos dessa ofensiva midiático-oposicionista, com direito até mesmo a relativo apoio a Dilma por suas respostas supostamente rápidas dadas à sociedade, demitindo gente adoidado: atingir o ex-presidente Lula.

Não tem jeito, para a mídia e oposição (no fundo, quase a mesma coisa), Lula teria que ter deixado uma "herança maldita". Tentou-se, no início do ano, ressuscitar o fantasma da inflação: diziam que suposto aumento descontrolado e generalizado de preços era a "conta" deixada pelo populismo do crescimento econômico com inclusão social promovido pelo líder petista. Acreditava-se que o dragão iria se autoalimentar com o pânico disseminado diuturnamente na imprensa, ou, de outro lado, teria o governo brasileiro de dar um "cavalo de pau" bem forte na economia para domá-lo; num e noutro caso, principalmente os mais pobres - os maiores apoiadores de Lula e Dilma - sairiam perdendo, com evidentes dividendos para a oposição.

O factoide inflação, como não poderia deixar de ser, já perdeu fôlego, sobrevivendo apenas graças aos interesses do mercado que fatura com elevação de juros, conforme já comentamos em post cujo link está disponível abaixo. Para enfrentar Lula, portanto, restou a bandeira do combate à corrupção, tentando-se a todo momento sugerir - quando não declarar abertamente - que a roubalheira de hoje é "obra" legada pelo ex-presidente.

O comportamento de alguns colunistas e as falas deixadas por internautas nas caixas de comentários na internet podem criar fantasias mirabolantes na cabecinha de crianças de 10 anos ou pouco mais de idade: até 2002 o Brasil era comandado por um "coro de anjos", aí chegou um barbudo malvado e corrompeu (literalmente!) os alicerces desta República tão invejada mundo afora; mas depois de oito anos de trevas, veio uma destemida mulher com sua vassoura – alô, Jânio Quadros (Freud explica!) – e começou a realizar uma boa faxina. Sim, claro, “faxina”, afinal de contas somos um país de machistas e não podemos esperar muita coisa de uma mulherzinha de esquerda senão uma boa... faxina.

Seria divertido se, em vez de papo furado, a mídia resolvesse enfrentar os fatos. Que tal reportagens comparando o número de operações da Polícia Federal sob o governo Lula e sob o governo Fernando Henrique? E o que será que os articulistas e colunistas teriam a dizer sobre os procuradores-gerais da República nomeados por Lula em oposição à figura do "engavetador-geral" de FHC? E quanto ao número dos servidores demitidos por corrupção nos governos do PT comparados aos do PSDB? E se repórteres investigativos resolvessem se interessar pelo conteúdo do chamado "dossiê dos aloprados"? E se começassem a chamar o "mensalão mineiro" de "mensalão tucano"? Mudando de esfera, por que não fazer uma reportagem, ao menos na mídia de São Paulo, sobre o número de CPIs sufocadas na Assembléia Legislativa durante este longo reinado do PSDB no estado?

Em momentos de comedimento, ou quiçá condescendência, já se ouve por aí que, de fato, houve malfeitos em todos os governos, mas o problema de Lula teria sido o de "institucionalizar" a corrupção, o que seria em tese mais grave. É o tipo de afirmação de certo rebuscamento sociológico, que mereceria maiores reflexões e esclarecimentos de quem a advoga - o que até o momento não foi feito. De todo modo, parece haver, num primeiro momento, um recado cômico na assertiva: "corrupçãozinha" do dia-a-dia pode; só não pode se for "institucionalizada"! Do ponto de vista mais sério, vão por água abaixo todas aquelas digressões filosóficas de nossos intelectuais - como sempre papagaiadas pelos nossos estratos médios - de que a corrupção brasileira é endêmica, cultural, está no nosso DNA etc, não por acaso proferidas quando se pretendia perdoar aos seus.

Ainda sobre a contraposição da corrupção, digamos, comezinha à dita "institucional", há uma dificuldade de cunho essencialmente político. É que deve ser difícil para um bom neoudenista sair por aí espumando de raiva com o “mar de lama” que nos afoga por obra e graça de um “analfabeto nordestino”, enquanto demonstra condescendência com a corrupçãozinha de intelectuais e reis-filósofos moradores de Higienópolis. Afinal, mesmo entre aspirantes a integrantes de um futuro “tea party” brasileiro deve haver um ou outro dotado de coerência e seriedade.

Leia também:
O que é isso, novos companheiros?
O inflacionado mercado das mentiras
Inflação: política e economia


domingo, 7 de agosto de 2011

CDs: não se deixe programar pela obsolescência

Logo quando os CDs começaram a se popularizar no Brasil - devagar, devagarinho - no início da década de 1990, alguns puristas e vinilófilos radicais saíram dizendo que em não mais do que dez anos os registros dos "discos-laser" simplesmente desapareceriam. Como nada aconteceu em tal período, falaram que seria em 15 anos. Tendo continuado a tocar os disquinhos, subiram para 20 anos. E quem tem CDs fabricados ainda no final dos anos 1980 pode confirmá-lo: os dados não sumiram coisa nenhuma.

Dia desses, um amigo teorizou que, no fundo, o sumiço dos dados não é, em absoluto, o grande problema. Ele apresentou o que seria para ele o verdadeiro motivo para não se gastar dinheiro com CDs originais: em breve, não somente a mídia será substituída por outra forma - inclusive "virtual" - mas também não será possível botar para rodar os itens da coleção, pelo simples motivo de que não haverá aparelhos para reproduzi-los. Quer dizer: os registros estarão lá no disco, mas de nada vai adiantar porque não haverá máquinas para decodificá-los, por assim dizer.

Na mesma hora lembrei-me de um episódio dos Simpsons, em que aparece um depósito de lixo no qual consta um espaço dedicado para "betacam", outro destinado para VHS, ambos já devidamente abarrotados de objetos, e um terceiro, ainda vazio, "reservado para DVDs".

Meu amigo e os Simpsons estão a tratar do famigerado fenômeno da obsolescência programada, assim definida no Dicionário de Economia, de Paulo Sandroni (São Paulo: Best Seller, 1989): se dá quando "a produção industrial determina de antemão o período de durabilidade de um produto(...), frequentemente se chega a preparar um desgaste artificialmente curto para obrigar os consumidores a uma reposição mais rápida do produto".

Aceitando que, com efeito, não é de se descartar a hipótese de sumirem os aparelhos apropriados para se ouvir CDs, há de se buscar um bom motivo para adquirir essas maravilhas. Quanto à música, criação humana, sempre se terá uma forma de a ela ter acesso e em algum lugar ficará guardada, nem que seja num museu, e certamente com a gravação de que gostamos. Mas e os CDs, objeto físico, forma tangível?

Uma boa desculpa para não abandonar o hábito de adquiri-los talvez seja comprar aqueles que - mais uma vez apropriando-se da linguagem dos economistas - tenham maior valor agregado, digamos assim. No caso, as edições com reprodução de capas originais, textos novos e da época, fotos inéditas, serviços completos das gravações etc.

Coleções como a Rudy Van Gelder Series, do selo Blue Note, a Columbia Legacy, da Sony-BMG, Atlantic Jazz Masters, com a turma da Rhino, entre outros, são ótimas pedidas. Os encartes dessas edições são praticamente livretos. Na RVG, da Blue Note, por exemplo, as fotos destacam preferencialmente os músicos da sessão, e não o artista que a lidera, e além do texto original, traz uma nova leitura do expert Bob Blumenthal. Na Atlantic Jazz Masters, por seu turno, tem-se o fac-símile da contracapa, mas para não precisar forçar muito a vista, todo o conteúdo é reproduzido no livrinho em letras maiores.

Não tem jeito. Tecnologia vai, tecnologia vem, mas o velho e bom livro sobrevive e não se cogita que ele venha a sumir de todo. O jeito, para quem gosta de gastar dinheiro com CDs, é pensar assim: adquirir um objeto que "contém" boa música, mas que pode, entre seus acessórios, trazer um pouco de boas imagens e, principalmente, boa leitura. São textos de Nat Hentoff, Ira Gitler, Gunther Schuller, Lenny Kaye, Fausto Canova, Martin Williams, Armando Aflalo e, não raro, os próprios artistas e produtores das obras fazendo "leituras atualizadas" dos trabalhos que protagonizaram.

É bom sempre adquirir, preferencialmente, discos de que não se vai enjoar. O problema, como aqui aventado, é não poder ouvi-los um dia, por algum motivo de força maior, como, por exemplo, a predação capitalista. Para não ficar com a sensação do risco de aquilo perder valor no futuro, fixemo-nos, então, na certeza de que um texto como o de Bruce Geller para a contracapa da trilha de Mission: Impossible, de Lalo Schifrin, não deve se perder nunca.