sexta-feira, 27 de maio de 2011

Moralismo seletivo

A história é verídica. Aqui, contada na mais possível fidelidade, até pelo menos onde a memória alcança.

Era 2007. O País estava às voltas com escândalo envolvendo o senador por Alagoas Renan Calheiros. No trabalho, havia uma amiga revoltadíssima com os rumos do caso. E ela se mostrava especialmente indignada com o então presidente Lula, por suas ligações com o alagoano.

-E esse Renan, hein? - dizia ela, dirigindo-se a mim - Começou lá atrás com o Collor, agora está com o Lula. Não me surpreende. Esperar o que desse Lula? Tudo a ver. Collor é Lula e Lula é Collor. E os dois estiveram com o Renan, cada um no seu tempo.

-Pois é - disse eu -, esse Renan é escroto mesmo. E pensar que foi ministro da Justiça. Como alguém pode nomear um cara desses ministro da Justiça?

-Exatamente. Mas é como eu disse: esperar o que desse Lula? Parece piada. Só podia ser coisa do Lula mesmo, colocar o Sr. Renan Calheiros no importante cargo de ministro da Justiça.

-Peraí. Ele não foi ministro da Justiça de Lula não.

-Ah, sim, claro - ela obtemperou, meio constrangida. Foi ministro da Justiça no goveno Collor - disse, como se estivesse arriscando. Ora, mas dá no mesmo. Afinal, Collor é Lula e Lula é Co...

-Fernando Henrique Cardoso - interrompi.

-Desculpa, não entendi - disse ela, enrugando a testa, sem passar muita certeza se não tinha entendido mesmo.

-O hoje senador Renan Calheiros exerceu o emblemático cargo de ministro da Justiça no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

-Desculpa, mas deve haver algum engano. Tenho lido muita coisa no jornal sobre o caso Renan e não me lembro de ter visto que ele foi ministro de Fernando Henrique. Tem certeza que não foi mesmo do Lula ou do Collor? Você deve estar confundindo as coisas. Ministro da Justiça do Fernando Henrique foi aquele cara lá... É... O... Puxa vida! Como é o nome dele mesmo?

-Teve uns caras bons - ajudei eu. O José Carlos Dias, o Miguel Reale Jr...

-Miguel Reale Jr. Isso mesmo. Era esse que eu queria lembrar. Mas Renan Calheiros? Francamente! Ele não foi ministro de nada do FHC. Pelo menos eu não me lembro... E nem ouvi nesses últimos dias ninguém falar disso. Acho que é você que está querendo tumultuar. Só isso.

"Tumultuar, eu?", pensei. Em vez de ficar discutindo, fiz uma pesquisa rápida na internet e em poucos minutos descolei uma lei qualquer (acho que foi a Lei Nº 9.642, de 25 de maio de 1998) em que constava o nome de Fernando Henrique Cardoso, presidente da República, seguido do de Renan Calheiros, ministro da Justiça. Entreguei a impressão nas mãos dela.

Ela olhava fixamente para o papel, parecendo não acreditar. Repetia em voz baixa, como querendo ter certeza de que não estava sendo vítima de uma fraude. De repente, começou a falar com dobrada rispidez.

-Ora, meu caro, que importância tem isso? O que vale é o "hoje", o "agora", entendeu bem? E hoje, agora, Renan é aliado de Lula, e é só isso que conta. Estão lá ó - disse, fazendo sinal com os dedos - juntinhos. Unha e carne. Aí você me vem com esse papo de ministro de Fernando Henrique... Que importância tem isso? Faça-me um favor. Isso é fugir do problema. FHC está no passado, e a gente tem mais é que pensar no hoje. E hoje o Renan está com o Lula. Entenda bem isso: a ligação de Renan com FHC é passado. Pas-sa-do. E o passado não tem importância nenhuma nesse caso.

-Mas se não me engano, o Collor é mais "passado" do que o Fernando Henrique. E até cinco minutos atrás esse "passado" parecia ter muita, mas muita importância.

Nessa hora minha amiga meneou a cabeça e voltou a trabalhar. Eu também. Aliás, trabalhar era o que deveríamos estar fazendo durante todo o tempo em que debatemos sobre o homem que foi ministro da justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso, no período de 07.04.1998 a 19.07.1999.

Lembrei dessa história acompanhando o caso Palocci e vendo os diferentes pesos e medidas da mídia nessa confusão.

A situação se parece muito.

Como não poderia deixar de ser, em 2007 estava louco da vida com o Sr. Renan Calheiros; mas não suportava ver a hipocrisia que envolvia o caso - e a relatada acima era apenas uma delas.

E agora, em 2011, também estou bronqueadíssimo com o Sr. Palocci, figura que adoraria ver longe do governo o quanto antes. Mas que é dureza presenciar a diferença do tratamento que lhe é dado na mídia quando comparado ao dispensado a outros figurões "competentes" da nossa República - inclusive com o mesmíssimo talento para o enriquecimento em prazo tão exíguo -, ah, isso é!

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