Provavelmente nunca houve na história ideário que tenha sofrido tão forte revés como o que ora se abate sobre o neoliberalismo. Nem mesmo a queda do assim chamado socialismo real teve tanto impacto sobre um conjunto de idéias. Afinal, o simpatizante socialista teve – e tem – a seu favor a defesa de que nunca, de fato, o modelo existiu numa forma pura. Afinal, dir-se-ia - o que existiu no Leste Europeu, por exemplo, foi um forte estatismo, economia centralizada/planificada, ou até mesmo, para nos valermos de expressão empregada por Robert Kurz, um socialismo de estado altamente concentrador, sem verdadeira propriedade social dos meios de produção, sem sombra sequer de ditadura do proletariado, antes havendo a ditadura das burocracias dirigentes dos regimes, com direito até a cultos de personalidade de alguns líderes.
O projeto neoliberal, por sua vez, existiu de verdade, foi levado a cabo em nações capitalistas de diversas tendências e tamanhos, foi-lhe assegurada a maioria de suas características, de forma a merecer poucos reparos, sempre se apostando nos dogmas de estado mínimo e da total liberdade cumulada com absoluta supremacia dos mercados, com direito ao mais completo descaso para com as questões sociais e de interesse do mundo do trabalho.
Mas a supercrise internacional deu um forte golpe na seara neoliberal, com a entrada em cena do “vil e desprezível” Estado, que a custa de todos aparece agora para salvar os empreendedores do admirável mundo novo idealizado pelos "Chicago Boys" e logo de cara abraçado por Thatcher, Reagan e outros.
É estarrecedor ver os circunspetos economistas de plantão e alguns colunistas da grande imprensa apoiando o intervencionismo estatal nos Estados Unidos e na Europa. Mas, como a fábula do sapo e do escorpião, há um sério problema de natureza envolvido na questão. Nesta semana, vi no BandNews TV um rapaz sendo entrevistado pela repórter de economia da emissora, direto da BM&F. O moço, não me lembro se da Academia ou se do mercado, comentando os últimos desdobramentos da crise, falou da importância da intervenção “temporária, transitória” do Estado nos negócios da economia. Isto mesmo: o garoto, talvez num ato falho – ou nem tão falho assim -, deixou claro que a fundamental atuação do Estado, a qual ele aprova, deve ser pontual, temporária, transitória! Quer dizer, o rapaz já está antevendo – ou talvez propondo – que, passado o "tsunami", o Estado e suas regras devam cair fora, deixando o espaço livre novamente para os lucros, que, ao contrário dos socializados prejuízos das quebradeiras, merecem voltar a ser devidamente privatizados.
Viu-se também muita gritaria na imprensa brasileira por conta da MP que abre caminho para a Caixa e o BB arrebanharem bancos menores em dificuldades. A primeira página de O Globo chegou a atribuir os maus resultados do mercado naquele dia ao susto que o governo brasileiro havia pregado com essa conversa (esqueceram-se de que a “volatilidade” da Bolsa e a instabilidade do dólar já estão aí há bem mais de mês, muito antes da tal Medida Provisória amedrontadora). Na Folha, por seu turno, chamada de primeira página trazia trecho de texto de um colunista dizendo que o PROER era melhor e mais transparente. Se eu bem entendi, o rapaz quis dizer que tudo ok quando o Estado entra na jogada, desde que seja para sanear bancos para o capital privado. Será que o leitor ficaria muito chocado se eu classificasse tudo isso de cara-de-pau das mais deslavadas?
Se o neoliberalismo morreu, o discurso neoliberal, como se vê, mantém-se vivo, ao menos no Brasil.
Uma objeção inteligente que o leitor bem pode fazer é a de que, se as idéias ainda encontram defensores, a colocação delas em prática não pode, do ponto de vista lógico, ser a priori descartada. Portanto, o neoliberalismo não pode ter morrido se os seus apologetas estão vivíssimos.
Mas nesse caso talvez teremos o embate, proposto por Weber, entre a “ética de responsabilidades” e a “ética de princípios”. Sem dúvida que aparecerão muitos - inclusive políticos - tentando novamente puxar a brasa para a sardinha do mercado, fazendo discursos liberalizantes, aproveitando-se do “cartaz” que isso dará, encontrando nisso uma forma de ganhar espaço privilegiado na mídia, junto aos empresários etc. Entretanto, em postos decisórios, faltará coragem a essas mesmas pessoas para propor desregulamentações, ausências de controle, o deixa-estar-para-ver-como-fica etc. Noutras palavras, ninguém quererá, a despeito da fé mais cega, apostar as fichas no deus-dará do mercado, pelo menos não enquanto ainda for viva a memória dessa avassaladora crise internacional.
Não é sobre liberdade (e eles sabem disso)
Há 5 semanas
Nenhum comentário:
Postar um comentário