Não economizemos nas palavras: o que Israel vem promovendo contra os palestinos na Faixa de Gaza pode ser chamado de massacre. Porém, tem-se visto, até mesmo dentre os que com isso concordam, o entendimento de que o Estado judeu apenas se defende de terroristas e que esse é o preço a se pagar na luta contra o terror. Noutras palavras, para se defender e, conseqüentemente, abater grupos como o Hamas, deve-se aceitar o sacrifício de vidas de civis e inocentes. E quanto a instalações da ONU, escolas, hospitais e universidades que são bombardeados, o problema está no fato de eles servirem de base para a organização terrorista.
Por incrível que pareça, vêem-se tais opiniões o tempo inteiro. As imagens de crianças ensangüentadas, de idosos mutilados e de gente comum morta não sensibilizam. A culpa, dizem eles, é do Hamas, que os utiliza como escudos humanos, ou das próprias vítimas, que aceitam dar guarida aos terroristas.
Para nós brasileiros, essa maneira de enxergar as coisas não deveria constituir novidade. No nível doméstico, a violência urbana, como diria João Moreira Salles, é a nossa guerra particular. E a luta contra ela às vezes se funda em argumentos semelhantes: numa chacina que dizima uma família de oito pessoas, não interessa se havia idosos setuagenários ou um bebê de quatro meses; o que importa foi ter “se livrado” de dois ou três bandidinhos que lá se encontravam. Ainda nessa linha de raciocínio, gostaria de relatar a opinião de um amigo ainda dos tempos de colégio, de uma época em que se começou a falar de organizações criminosas e do poder do tráfico nas favelas do Rio. Esse meu amigo defendia a tese de que se devia simplesmente explodir uma bomba sobre aquelas comunidades. Se alguém o lembrasse de que por lá havia trabalhadores e outras pessoas que nada tinham a ver com a criminalidade, ele simplesmente respondia que todos eram em alguma medida cúmplices, pois nada faziam para mudar aquela situação, ou, mais cinicamente, ele sugeria que era um preço que se deveria pagar para se livrar de um mal maior. Confesse, caro leitor, você já ouviu algo semelhante por aí, não?
Acerca de abusos cometidos pela polícia e de atos de justiceiros e grupos de extermínio, não faltam os que dizem tratar-se de medidas de retaliação aceitáveis, afinal a bandidagem não hesita em usar pesada violência contra as suas vítimas. Em Israel, é o que estão tentando dizer para justificar o uso desproporcional de força: quem se preocupa com as vítimas civis que o Hamas ataca com seus foguetes? Perguntam eles indignadamente. É como se quisessem sugerir que, ao usar o terror, grupos como o Hamas legitimam o uso de um dos maiores arsenais bélicos do mundo contra um povo praticamente indefeso.
Aos que defendem os abusos policiais e as ações de retaliação cometidas por milícias no Brasil, pode-se responder com o contra-argumento de que os atos daqueles grupos os igualam aos criminosos. De igual modo, no caso dos israelenses, pode-se dizer que o abuso da força, a violência contra civis, a despreocupação com questões humanitárias e a surdez em relação aos protestos em nível mundial os aproximam de grupos terroristas. Dito de outra maneira, a “função” de criminosos no Brasil e no mundo é cometer crimes, e da polícia e da sociedade é combatê-los e preveni-los, sempre dentro da lei. Terroristas, por seu turno, aplicam métodos terroristas, é o que se espera deles; já os estados politicamente organizados têm o dever de lutar contra o terror, mas dentro das regras internacionais e em respeito aos direitos humanos.
Aceitar abusos e massacres sob o argumento de que é uma luta contra perigos maiores e piores, não importa se é no caso da criminalidade comum ou do terrorismo internacional, apenas dá razão aos argumentos do, digamos, “inimigo”. Acerca disso, recomendamos a leitura de texto da revista Al Jazeera, reproduzido no Vi o Mundo: “Democracias vivem recessão econômica e moral”, de Muqtedar Khan.
Não é sobre liberdade (e eles sabem disso)
Há 5 semanas
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