Deu pano para manga a “ditabranda” da Folha de São Paulo. Referindo-se ao regime militar brasileiro, o jornalão usou a estranha expressão num editorial sobre a Venezuela, colocando-se, assim, no centro de apaixonada polêmica - o que talvez tenha sido mesmo o objetivo de seus responsáveis, haja vista que o diário paulistano sempre foi dado a fazer de si mesmo a notícia e o centro das atenções.
Como seria de se esperar, houve várias manifestações de leitores, muitas devidamente publicadas na seção de cartas. Dentre os missivistas estavam os professores da USP Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides, ambos críticos ao termo utilizado pela Folha. O jornal respondeu aos manifestantes da seguinte maneira: “Nota da Redação - A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua "indignação" é obviamente cínica e mentirosa”.
Acerca da falta de cordialidade devida a todos os leitores – figuras públicas ou não – o ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva, ainda que laconicamente, tratou na sua coluna de domingo 22 de fevereiro. Diversas outras críticas e análises pulularam durante a semana. Certos aspectos mais sutis, no entanto, foram ignorados.
Acusar Benevides e Comparato de cínicos em relação a esse caso é algo aceitável, mesmo quando disso se discorde, pois é uma proposição dotada do mínimo de plausibilidade lógica. Afinal, de acordo com a ingenuidade linear da Folha e daqueles que com ela concordam, se se aceita candidamente o regime cubano, muitas vezes acusado de ditatorial, não há sentido reagir tão prontamente à associação da idéia de brandura com os anos de chumbo no Brasil. Está-se, é claro, usando a idéia de cinismo na sua acepção popular, qual seja, de descaramento e de desfaçatez. Neste caso, pois – devem pensar os editores do diário -, os professores da USP estariam usando pesos e medidas diferentes para situações similares ou estariam puxando a brasa para a sardinha de que gostam, enquanto demonstram intolerância com uma situação pela qual antipatizam – questão meramente ideológica, portanto. Ainda que provida de lógica a acusação, o jornal não percebeu, porém, que a sua resposta parece ter dado razão aos críticos, pois a sua referência a Cuba como efeito de comparação, com a afirmação de que lá vigora uma ditadura, de certo modo admite que a utilização do termo “ditabranda” pode ter sido despropositada. Afinal, na nota o jornal não defendeu a utilização da curiosa palavra e, ainda que implicitamente, admitiu que o nome que melhor define o que houve aqui no Brasil durante o período militar é, sim, com efeito, “ditadura”, vocábulo usado para se referir ao governo cubano!
E quanto a chamá-los de mentirosos? Neste ponto a coisa se complica de vez para “o maior jornal do país”. O fato de ser o maior não lhe dá o direito de afirmar que alguém mente, a não ser que amparado em fatos concretos. No caso em tela, o que se discute é apenas um sentimento individual: a indignação. Seria necessário ter acesso privilegiado aos estados mentais dos sujeitos Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides para se afirmar, de forma tão peremptória, que a indignação deles é mentirosa. Noutras palavras, se alguém se declara indignado com algo, temos a obrigação de acreditar no que diz, haja vista que a suposta indignação está sendo sentida por ele. É possível, talvez, que num viés “wittgensteiniano” se possa objetar com a alegação de que fatos mostram que a indignação não é verdadeira. Tal fato, poderia dizer o pessoal da Folha, seria a revolta dos professores com as ditaduras de direita e a sua condescendência com as de esquerda. Mas esse é o tema do parágrafo anterior. Caso queira, que se chame tal sentimento de cínico, incoerente, hipócrita; de mentiroso, não! Repitamos, pode haver aí um problema de ideologia. E o “sentimento” (frisemos bem a palavra) vai variar de acordo com o gosto (ideológico) do freguês. Somente o Fábio e a Maria Victoria poderiam dizer que mentiram quando se manifestaram com indignação. Para uma pessoa dizer que a indignação alheia é mentirosa, ou seja, afirmar que dado sujeito se diz indignado quando em verdade não está, só seria possível se ela tivesse o poder de ter acesso aos estados mentais dele (Que se saiba, a Folha também não tem tal poder. Ainda!). Ou, quem sabe, os editores do principal jornal paulistano sejam muito dados a mentir quando se dizem indignados, de modo que sejam capazes de perceber – e de certa forma entrever – a mentira por trás da indignação – o que provavelmente seria, mais uma vez, um recurso “wittgeinsteiniano”.
P.S. As referências indiretas ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foram utilizadas com alguma irresponsabilidade, haja vista que este escriba não se sente (ou pelo menos não deveria se sentir) muito seguro de recorrer a este grande nome do pensamento do século XX. De qualquer forma, acreditamos que isso não chega a comprometer o texto, o qual, aliás, deve estar eivado de outros defeitos potencialmente mais graves.
Não é sobre liberdade (e eles sabem disso)
Há 5 semanas
Nenhum comentário:
Postar um comentário