De maneira geral, os leitores parecem irritar-se um pouco com citações e referências intelectuais em textos que se pretendem simples, diretos e acessíveis – e decerto que os irritadiços não merecem reprovação por isso. Este blog não há muito já cometeu a arrogância de recorrer a Immanuel Kant para ilustrar comentários sobre a política rasteira. É de lamentar que venha a fazê-lo novamente neste post.
Na sua Fundamentação da metafísica dos costumes, na primeira seção, Kant já apresenta a importância de uma boa vontade que tenha valor em si mesma. Pode-se, segundo o filósofo, praticar uma ação por dever ou conforme o dever. Nesta, executa-se o ato de acordo com regras aceitáveis por temor a sanções ou pela esperança de se obter algum tipo de recompensa; na primeira, a ação é levada a cabo pelo que tem de correto em si mesma, conforme apontado pela razão, sem se importar com as conseqüências. Não há dúvida que as inclinações, o medo e o cálculo poderão estar por trás das mais diversas práticas, assim como podem elas ser moldadas pelas circunstâncias. Uma boa bússola para a se evitar os relativismos é a idéia de se buscar transformar o ato individual em lei universal.
Um dos exemplos utilizados pelo filho mais famoso de Königsberg é o ato de prometer algo. Pode parecer muito prudente fazer uma promessa que já se sabe que não vai cumprir, desde que isso represente a fuga, o desvio ou o retardamento de problemas latentes. De todo modo, assevera o prussiano, ao se livrar de dificuldades presentes, pode-se estar criando complicações futuras. Daí a importância de se tentar universalizar o ato: se prometer o que não vai cumprir for considerado aceitável pelas circunstâncias, toda e qualquer promessa vai evidentemente nascer sob o signo da desconfiança. É mais prudente, pois, diz Kant, nunca prometer aquilo de que não se tem o propósito de cumprir.
O “exemplo da promessa” é a senha para se sair das elucubrações kantianas e entrar no mundo tangível da política brasileira.
Tem-se discutido recentemente sobre a CSS (mais conhecida como nova CPMF). A proposta da ala governista vem encontrando dificuldades no Congresso Nacional, afinal é ano de eleição e o tema “impostos” é por demais impopular para que a idéia emplaque sem maiores problemas.
No caso do tributo da saúde, o simples cumprimento de uma promessa poderia ter evitado revezes ao atual governo. Na impossibilidade de consulta ao programa de governo do candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 (frise-se, por favor, o pleito de 2002), que se recorra à memória e se procure lembrar da entrevista que o postulante ao primeiro mandato como presidente deu ao Jornal Nacional, ainda antes do primeiro turno. Naquela oportunidade, foi perguntado a Lula se ele, uma vez eleito, iria acabar com a CPMF. Num ato de louvável sinceridade política, o petista corajosamente disse que não pretendia extinguir o tributo. Porém, o então candidato afirmou que iria reduzir gradativamente a alíquota para 0,08% até o final daquele mandato, que se daria em 2006.
Como se sabe, Lula elegeu-se em 2002 e reelegeu-se em 2006. O presidente cumpriu parte da promessa feita ao lado de William Bonner e Fátima Bernardes: de fato, não propôs a extinção da CPMF; esqueceu-se, todavia, de reduzir a alíquota! A CPMF, também é sabido, foi derrubada no Congresso no final de 2007.
O moralismo kantiano, em parte, volta à cena: com efeito, teria sido menos penoso para o Governo Federal ter cumprido a promessa de diminuir paulatinamente a percentagem de cobrança sobre as operações, pois certamente a oposição não teria encontrado terreno fértil para derrubar um tributo que de modo geral sempre pareceu pouco pernicioso para a maioria da população. Não há dúvida de que a redução da alíquota era possível, haja vista a crescente arrecadação que de há muito se verifica. E tanto isso é verdade que a proposta da CSS fala em 0,1%, ou seja, quase quatro vezes menos que a extinta CPMF. Se tal montante não é desprezível agora, por que não foi apresentado dentro daquele período sugerido pelo ainda candidato Lula em 2002, evitando, assim, o inexorável desgaste que tal tipo de proposta indubitavelmente traz?
Ater-se à complexidade do pensamento de um dos maiores filósofos da História - tratando de “imperativos categóricos”, moral, razão, metafísica etc. - para tentar entender alguma faceta de práticas políticas no Brasil, talvez não seja dos melhores expedientes. Mas, analisando a questão de forma simples e objetiva, será que não há algum ensinamento que possa ser tirado de um tema como esse? Não há dúvida de que é praticamente impossível os políticos abdicarem de fazer promessas, até porque nós gostamos muito delas. Mas certamente seria bom para todos que elas fossem cumpridas quando possível.
O cumprimento da “promessa” do presidente Lula sobre a CPMF em 2002, pelo que tudo indica, era perfeitamente possível.
Não é sobre liberdade (e eles sabem disso)
Há 5 semanas
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