Falou-se muito durante a semana sobre a “Rodada de Doha”. As reuniões terminaram sem acordos considerados importantes para o comércio internacional. Muito se disse a respeito de quem supostamente ganhou e de quem provavelmente perdeu; conjeturou-se acerca da prevalência da importância da OMC; especialistas defenderam a atuação da diplomacia brasileira, enquanto outros a condenaram; opiniões divergentes se apresentaram quanto às futuras estratégias de países ricos e emergentes no cenário que se desenha a partir dos resultados práticos da Rodada.
Mas há um elemento muito forte na Rodada (porém muito longe de ser somente nela) que passa bem ao largo das discussões sobre o assunto. Refiro-me ao Estado como um ente reduzido a gerente de interesses de classe.
A cidade de Doha estava repleta de ministros e de funcionários públicos representantes de vários países e de blocos com poderes de Estado. Mas as discussões lá buscavam resultados e propostas que, em última instância, visam apenas aos interesses privados dentro da lógica capitalista, com vistas ao lucro e à acumulação de capital que favorecerão pequenos grupos.
E vem sendo assim de há muito. É só o que se vê nas peregrinações internacionais da maioria dos chefes de Estado. Presidentes e ministros, quando se dirigem a outros países, vão rodeado de empresários, muitos deles seus inimigos figadais declarados no campo político, e a maior parte de seus compromissos são com empresários ou entidades representativas de patronatos locais. Chefes de Estado – e de Governo também – quando vão cumprir agenda internacional agem como executivos de grandes empresas.
Não há dúvida que a dose hoje em dia é maior, e que o mascaramento nem precisa ser tão eficiente, mas a grande verdade é que, sob o capitalismo, a coisa sempre se deu mais ou menos dessa forma. Trata-se da ideologia tal como descrita por Karl Marx; ou tem a ver, de forma mais aprofundada, com o que se chama “superestrutura”. Diz o pensador alemão, em trecho clássico: “(...). A totalidade destas relações de produção (forças produtivas materiais) forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma 'superestrutura' jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Para a crítica da economia política, in col. Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1991; pp. 29-30,). Ainda sobre superestrutura, o pensador alemão lançou também estas palavras importantes: “(...). Sobre as diversas formas de propriedade e sobre as condições sociais de existência se levanta toda uma 'superestrutura' de sentimentos, ilusões, modos de pensar e concepções de vida diversos e formados de um modo peculiar. A classe inteira os cria e os forma derivando-os de suas bases materiais e das relações sociais correspondentes” (El Dieciocho Brumario de Luis Bonaparte, Moscou: Editorial Progreso, s/d, p. 35).
Se a questão fosse ao menos debatida, certamente que se veriam pessoas dizendo que está tudo muito bem, os governos devem realmente realizar tal papel, pois o comércio internacional precisa ser superavitário, afinal os países precisam de reservas, não podem ficar vulneráveis a crises internacionais etc. Ora, mas isso é exatamente o que o velho Marx diz e é o que ele chama de superestrutura e de ideologia. São as coisas devidamente mascaradas parecendo que são naturais. Muitos diriam também que tudo é para o bem da maioria da população, ou seja, daqueles que dependem de emprego e de uma situação de tranqüilidade e paz social para sobreviver. Mas isso nada mais seria do que a famosa inversão da chamada ideologia burguesa. Não raro se ouve amiúde que o capitalismo é o sistema mais natural porque está ligado a algumas das características mais marcantes do ser humano, tais quais o egoísmo, a insaciabilidade dos desejos, a inquietude etc. Noutras palavras, o capitalismo é hegemônico porque estamos sempre querendo melhorar de vida, trocar de carro, comprar aparelhos mais modernos. Porém, em verdade ocorre o contrário: a superestrutura que se agiganta acima do modelo econômico é que reproduz o modus vivendi mais afeito ao sistema. Ou seja, o capitalismo não se justifica pelo nosso desejo de ter um celular cada vez mais novo; antes queremos ter um telefone móvel atrás do outro porque vivemos numa sociedade capitalista!
Não se lê sobre isso nos jornais, nem se ouvem as pessoas discutindo tal tema no dia-a-dia. Mesmo nos meios acadêmicos, parece que assuntos que envolvem discussões sobre o modelo econômico e sobre a ideologia que lhe vem a reboque estão superados. É por isso que, ao se falar da Rodada de Doha, observam-se seus desdobramentos práticos, mas não se adentra ao significado de questões como comércio enquanto corolário das relações sociais de classe, globalização da ordem econômica, o poder político sobrepujado pela força econômica etc.
E sigamos em frente na era dos políticos caixeiros-viajantes, empregados de conglomerados econômicos.
Não é sobre liberdade (e eles sabem disso)
Há 5 semanas
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