domingo, 23 de março de 2008

O(s) mercador(es) de Veneza


A edição nº 15 de O judiciário paulista, publicação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, trouxe interessante matéria sobre a relação do Direito com a Literatura, especialmente sobre como a “narrativa literária ajuda os operadores do Direito a desvelar a realidade social e jurídica”. Para tanto, fez rápidos comentários acerca de grandes obras-primas que vão desde As nuves, de Aristófanes, até O auto da compadecida, de Ariano Suassuna.

Um dos títulos tratados na matéria é o clássico O mercador de Veneza, de Shakespeare. Não por acaso a obra também foi recentemente debatida no colóquio “Filosofia e literatura política”, promovido pelo Departamento de Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, de São Paulo.

O texto do dramaturgo inglês parece cair como uma luva para o momento histórico em que foi escrito, época que via o florescimento das cidades e o nascimento do Estado moderno. O Direito consuetudinário aos poucos dava lugar ao Direito positivo. Na peça, a personagem Shylock nada quer além da simples execução de um contrato, no caso a de que um devedor lhe pague com a garantia oferecida, qual seja, uma libra de sua própria carne.

Com Shylock não há conversa! Não adianta pedir-lhe clemência ou apelar para sua piedade. Ele quer apenas o cumprimento do contrato nos limites da lei. Em diversas situações, a personagem lembra da importância de se seguir a lei e de respeitar o que fora contratado, como forma de manter a segurança jurídica da cidade, argumento que, para assegurar a dramaticidade da peça, é bem aceito pela personagem Pórcia, que está travestida de juiz.

Mas é justamente a fidelidade à letra fria da lei e aos estritos termos do contrato que salva Antônio, o mercador de Veneza, de ter extraída uma libra de sua carne como pagamento de sua dívida a Shylock: o contrato não previa o sangue que forçosamente se derramaria com o corte da carne. E o pior é que a aplicação de uma lei municipal ainda traria maiores problemas ao credor! Sempre no estrito cumprimento da lei, Shylock ficou sem alternativas, afinal, era o contrato!

Passados quase cinco séculos ainda se ouvem alguns “shylocks” por aí. Geralmente eles clamam pela absoluta autoridade dos contratos. Isso ocorre sobretudo em assuntos econômicos e de política internacional. Normalmente se dá com a famosa chantagem que afirma que a suposta quebra, ou até mesmo a revisão, de um contrato por parte de um país traria algum tipo de insegurança jurídica que afugentaria investidores, principalmente os estrangeiros, daquela nação. Poucas vezes pergunta-se sobre a legitimidade daquele contrato, ou acerca de seus resultados práticos no que se referem ao interesse público, por exemplo. O que importa é que ele deve ser cumprido. Como um bom “Shylock”, eles simplesmente dizem: “Juro por minha alma que não há língua humana que tenha bastante eloqüência para fazer-me mudar. Ao conteúdo de meu contrato, eu me atenho”.

Esse assunto deve voltar à tona em breve. A propósito, em que dia mesmo ocorrem as eleições no Paraguai?

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