A cidade de São Paulo atingiu a marca de seis milhões de automóveis nos últimos dias. Na média aritmética é um carro para menos de duas pessoas. Trata-se de um dado assustador, como logo veremos.
Sem dúvida que tão assombroso número tem a ver com o momento razoavelmente aquecido da economia: a indústria automobilística não obstante a automação ainda gera um bom número de empregos diretos, inclusive com salários acima da média do mercado brasileiro, e, por ser o automóvel um produto de alto valor agregado, tal indústria ainda tem a capacidade de, mais notavelmente, gerar uma enormidade de empregos indiretos. Também é certo que a indústria automobilística é uma das principais responsáveis pela excepcional arrecadação de impostos observada nos últimos tempos. E não pára por aí, o setor de seguros e de financiamentos, fabricantes de acessórios e o mercado de usados lhe crescem a reboque. Não é difícil perceber que o ciclo virtuoso se instala com facilidade, graças à vertiginosa atividade de um setor ponta-de-lança como esse dos automóveis.
Mas há o outro lado da moeda: a destruição do meio ambiente, a degradação do espaço urbano, a frieza humana contrastando com o aquecimento do clima (sem qualquer tentativa de ser poético). Antes que alguém diga que isso é decorrência das péssimas condições do transporte coletivo, cuja má qualidade leva as pessoas a optarem pelo veículo particular, eu ousarei a – mais uma vez – afirmar que em verdade ocorre o contrário: o transporte coletivo numa cidade como São Paulo é muito ruim por culpa da prioridade comumente dada ao transporte individual.
Em primeiro lugar, o desenho urbano das grandes cidades em geral, e de São Paulo em particular, é pensado para o veículo individual: uma das marcas da cidade - e vocação de alguns de seus políticos mais populares - sempre foi a construção de grandiosas obras viárias, geralmente voltadas mais aos interesses particulares do que ao interesse coletivo. Em segundo lugar – se o leitor permite uma opinião idiossincrática bastante arriscada -, há o condicionamento psicológico: as pessoas não vêem outra solução ao “martírio” do transporte coletivo que não seja a aquisição do carro próprio, o que sem dúvida diminui a pressão social para a solução dos problemas do sistema. E em terceiro, há a questão do esnobismo social, com a idéia de status freqüentemente associada ao uso do automóvel, além da sensação de poder, de conforto e de modernidade que tal tipo de bem geralmente traz. Tudo isso parece ser um grande desestímulo a que nossos pragmáticos políticos gastem “cartucho” com investimentos no transporte coletivo, pois sabem que o eleitor se lembraria mais facilmente deles pelo que fizessem em benefício do uso do “carrão” particular.
Eis a feição de uma crise: temos um produto cujo uso de forma geral é a marca da irracionalidade, cuja popularização é danosa ao meio ambiente e à qualidade de vida, mas que se ausente nos termos em que se apresenta, poderia representar uma economia mais retraída, um Estado quebrado e pessoas inexplicavelmente mais infelizes. Ao contrário do verso de Rimbaud, “tornamo-nos mulheres velhas com coragem de amar a morte”! É realmente muito desalentador ter de às vezes regozijar-se de uma situação caótica: este blog mesmo, o leitor certamente se lembrará, em algumas oportunidades apontou os extraordinários números da indústria automobilística nacional como forma de desqualificar as incongruentes ressalvas da imprensa e da oposição à situação econômica do Brasil. É... Como se vê, não apenas os políticos são tão pragmáticos; tampouco somente a mídia tradicional o é. Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa!
Não é sobre liberdade (e eles sabem disso)
Há 5 semanas
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